Wilson Martins
Wilson Martins vê o
edifício da crítica em ruínas
Por
Rosane Pavam
Às vésperas de seus 75 anos, o
erudito desanca o poder de análise dos resenhistas e diz que os
novos editores têm sabido arriscar
O crítico paranaense Wilson Martins
completa 75 anos no dia 3 de março e deixa a impressão de ser um
entre os pilares de um edifício em ruínas. Professor emérito da New
York University e membro do Conselho Estadual de Cultura do Paraná,
ele tem as mãos sobre os destroços da imprensa literária brasileira,
mas não parece se preocupar especialmente. Enquanto houver um texto
sobre o qual se debruçar, ele ali estará, intacto como um sábio
entre os véus do Parthenon, elaborando mais um volume para sua série
Pontos de Vista, que reúne artigos para a imprensa e neste ano deve
atingir o 13º volume, pela editora T. A. Queiroz.
É dali, do alto de seus 50 anos como
crítico, que Martins, colaborador atual de dois jornais diários,
assiste ao lento desempilhar dos blocos de mármore das letras
nacionais. Não quer condenar Chico Buarque por seu suposto
amadorismo, mas dispensa os livros do compositor, Estorvo e
Benjamim, como peças renovadoras da literatura local. Vê no editor
de Chico um bom editor e, na sociedade que nos cerca, a mesma
perspicácia observada nos sete volumes de História da Inteligência
Brasileira, de sua autoria, relançados pela mesma T. A. Queiroz. Em
entrevista concedida por fax ao Caderno de Sábado, de sua residência
em Curitiba, o autor de A Palavra Escrita (História do Livro, da
Imprensa e da Biblioteca), relançado pela Ática, vai fazendo suas
distinções. Afirma a ligeireza dos resenhistas, tão americanos, em
oposição à análise dos críticos, tão franceses. Aponta méritos no
Affonso Romano de Sant’Anna poeta e, entre outras luzes de erudição,
sustenta que a família espiritual de Carlos Drummond de Andrade é a
dinastia dominadora na literatura brasileira.
Em um artigo publicado nos anos 50 no jornal
The Nation, a escritora Mary McCarthy já identificava o
destroçamento da imprensa literária norte-americana. Dizia McCarthy
que os críticos haviam se tornado vendedores de livros, ocupando um
papel que caberia às editoras, impossibilitadas de anunciar seus
produtos. O sr., que é um dos críticos brasileiros essenciais,
considera que este fenômeno ocorre em medida semelhante no Brasil de
hoje?
Mary McCarthy reagia contra uma realidade característica da vida
intelecual norte-americana, cuja emergência e desdobramento foram
estudados por Joan Shelley Rubin em livro recente (The Making of
Middlebrow Culture, 1992). É a cultura mediana, identificada por
Margaret Widdemer com os "homens e mulheres razoavelmente
civilizados, razoavelmente educados, que, pela compra dos seus
produtos, apóiam os críticos, conferencistas e editores". Situam-se,
dizia ele, entre os viciados em tablóides e o diminuto grupo dos
intelectuais propriamente ditos, em uma palavra, constituem a
maioria ledora. As referências à altura da testa provinham da
frenologia: transformadas em descrição do calibre intelectual,
escreve Joan Shelley Rubin, "testa alta" (highbrow) era, por volta
de 1880, sinônimo de "refinado"; 20 anos depois, "testa baixa" (lowbrow)
passou a denotar falta de cultura. No que concerne à literatura, a
resenha é a forma de crítica destinada e apropriada ao público
mediano, cujo interesse principal, se não único, é o chamado
conhecimento útil. A função do resenhista, declarou em 1877 o editor
literário do New York Evening Post, George Cary Eggleston, "é dizer
aos leitores de jornais que livros foram publicados e a que espécie
pertence cada um deles, ajudando-os a decidir o que comprar. Seu
trabalho não é crítico e pertence, antes, ao noticiário, omitindo
tudo o que pareça crítica desfavorável". Depois da guerra, esse
modelo passou para os jornais brasileiros; foram assim abandonadas
as tradições francesas em que nos tínhamos formado, com o "crítico
oficial" e permanente exercendo funções judicativas.
No Brasil, os livros se transformaram em moeda
de rápida circulação. As editoras criam novidades a cada mês para
alimentar sua própria sobrevivência. Raramente relançam seus livros
essenciais, que parecem não vender. Estaria neste fato a origem do
surgimento, como aponta o sr., de escritores como Chico Buarque, que
em sua opinião, reproduzida em entrevistas, deveria permanecer na
história brasileira apenas como um poeta da música? Chico Buarque
teria se tornado moeda rápida e segura?
Desejo esclarecer, antes de mais nada, que não faço crítica de
autores, mas de livros. Jamais me passaria pela cabeça prescrever o
que Chico Buarque ou qualquer outro devem fazer ou deixar de fazer
no futuro: apenas registro um julgamento de valor sobre o que
efetivamente publicam na área da literatura. O outro problema é, ao
mesmo tempo, comercial e histórico. Somos tradicionalmente um país
de edições, mais que de reimpressões, excetuados, claro está, os
livros de grande popularidade ocasional. Basta dizer, para citar
apenas um exemplo, que, publicado em 1908, um livro clássico e
fundamental para a nossa cultura como D. João VI no Brasil, de
Oliveira Lima, só foi reeditado em 1945 — desaparecendo de novo até
agora, quando nova reedição está sendo anunciada pela Topbooks. Ou
seja, 37 anos entre a primeira edição e a segunda, e 51 entre essa e
a terceira. Sendo numerosos e escandalosos, tais casos não
justificam nossas vaidades de país culto. Isso não tira legitimidade
aos programas comerciais das editoras, que devem aproveitar as marés
favoráveis do mercado. Afinal de contas, trata-se de uma indústria.
Diz-se, mesmo, que os livros de sucesso pagam, ou devem pagar, pelos
de público reduzido e é efetivamente o que fazem os editores dignos
desse nome.
O sr. ainda consegue identificar no Brasil a
figura do editor de livros? Há no País aqueles que sabem perceber os
nomes merecedores de destaque literário e editar seus textos em
publicações equilibradas? Quem são esses editores?
O mercado editorial brasileiro, conforme se lê no volume com que a
editora Ática comemorou o seu 30º aniversário (Momentos do livro no
Brasil,1995), está vendendo "cerca de 300 milhões de exemplares por
ano, distribuídos por mais de 600 editoras". Pelo menos em termos
industriais, não se pode falar em nenhuma "crise do livro". É
confortador registrar que temos, como sempre tivemos, desde o velho
Paula Brito e o legendário Garnier, alguns editores que, para
repetir as suas palavras, "sabem perceber os nomes de destaque
literário" e publicá-los como parte do seu programa cultural. Isso
inclui o inevitável quociente de risco, nomeadamente no que se
refere aos autores novos. Entre esses editores, podem-se mencionar,
por exemplo, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, José Bantin
Duarte, da Ática, T. A. Queiroz, na editora que leva o seu nome, e
José Mário Pereira, da Topbooks. Eles representam o mundo da edição
visto em perspectivas diversas e complementares, cada um com a sua
"vocação", por assim dizer, no que o ambiente atual se diferencia
dos anos 30 e 40, em que a editora José Olympio era antonomástica de
nossa vida literária.
Por que os editores, críticos literários e
leitores, como aponta o sr., não têm olhos para o presente? Não há
boa literatura para encantá-los? Não há tentativas de renovação na
literatura atual que possam chamar a atenção das pessoas que lêem?
Na medida em que se reconhece a vitalidade literária de cada país
pelo aparecimento sucessivo de obras realmente novas, é certo que
estamos vivendo neste momento um compasso de espera. O último dos
movimentos renovadores foi o Concretismo, cujo atestado de óbito
Haroldo de Campos expressamente assinou em 1960, ou seja, já há mais
de 30 anos. Contudo, o Concretismo reformou tanto a mansão da poesia
que acabou por torná-la inabitável. Os poetas "históricos", como
João Cabral, Bandeira, Drummond e Cassiano Ricardo, trataram de
manter as duas distâncias, o primeiro com sobranceria, o segundo com
decepção, o terceiro com ironia e o quarto com invidiosa rivalidade.
Muitos contemporâneos, como Ferreira Gullar, Affonso Romano de
Sant’Anna ou Ivan Junqueira, seduzidos por um momento, logo
compreenderam que era preciso fazer outra coisa. No momento, não há
"escolas" literárias — há, até, o contrário delas, que são os
escritores construindo, cada um por si, a sua obra individual.
O conto serve como exercício ao romancista?
Digo isto porque muitos dos autores americanos que se destacaram na
literatura policial e a ficção científica, como Isaac Asimov e
Dashiell Hammett, começaram e revistas de contos, de que o Brasil
atual não dispõe.
De minha parte, creio que conto e romance exigem duas formas
diferentes de talento, dois tipos de inteligência criadora. São
espécies do gênero ficção, mas não se confundem nem têm
correspondências genéticas. O conto não é um exercício de escalas a
fim de que o ficcionista se prepare para escrever romances, assim
como o soneto não é a forma embrionária da epopéia. A prova está em
que os grandes romancistas são, em geral, contistas medíocres, e
insignificantes os romances de contistas. Claro, há em nossa
literatura o debate clássico sobre Machado de Assis, mas não é
difícil perceber que os seus contos mais perfeitos foram "pensados"
como romances, qualquer coisa como o bonzai continua a ser uma
árvore, embora transformada em planta ornamental. É o kitsch ao
mesmo tempo ecológico e antiecológico... Tudo bem considerado, a
literatura norte-americana é uma literatura de contistas, não de
romancistas: a ficção científica e as histórias policiais são, na
realidade, contos longos, concebidos como contos de maior extensão e
desenvolvimento linear (ao contrário do romance, cujo
desenvolvimento é circular). Um dos mitos nostálgicos da crítica
norte-americana é o aparecimento, algum dia, da "great American
novel", aspiração secreta jamais satisfeita. Entre nós, o conto
passou, há algum tempo, por um período de fastígio: havia, mesmo, a
revista Ficção, que lhe era exclusivamente dedicada.
Multiplicavam-se então as antologias, seja de contos já publicados
em volume, ou inéditos premiados nos inumeráveis concursos
existentes. Valeria a pena verificar quantos desses contistas eram
ou se transformaram em romancistas e, bem entendido, quantos deles
eram realmente contistas...
Por que se tornou tão difícil para a atual
geração de escritores contar bem uma história?
Os autores parecem perdidos entre ter de desenvolver uma linguagem
fragmentada, "evolutiva", em seus textos e servir com propriedade ao
ofício de narrar.
Isso se deve, creio eu, ao experimentalismo programático que se
apossou da ficção e da poesia. Todo escritor em botão deseja
rivalizar com Joyce e Ezra Pound, se não destroná-los para sempre.
É de mencionar igualmente o efeito perverso das novas escolas de
crítica: ficcionistas e poetas passaram a escrever para os críticos,
para agradá-los e confirmar-lhes as respectivas teorias. O novo
romance francês, a "escola do olhar" dos anos 50, foi o ponto de
ruptura entre as técnicas tradicionais e as que se propuseram a
renová-las ou substituí-las. Jean Ricardou, teórico do novo romance,
propôs esta fórmula soberba: o romance tradicional é a narrativa de
uma aventura, o novo romance é a aventura de uma narrativa.
O sr. acompanha o desenvolvimento de uma nova
literatura policial brasileira? O que acha de autores como Patrícia
Melo e Fernando Bonassi, por exemplo?
Nada conheço de Bonassi e, quanto a Patrícia Melo, é daqueles "nomes
a guardar", como dizia Sérgio Milliet diante das esperanças ainda
amorfas. De uma forma geral, acho que os brasileiros não têm a
"cabeça detetivesca", assim como se diz que os franceses não têm a
"cabeça épica". Basta lembrar que, pretendendo escrever um romance
policial, Jô Soares acabou escrevendo um romance histórico, que é o
tropismo predominante em nossa ficção. Há o caso exemplar de Rubem
Fonseca, mas pode-se perguntar até que ponto são policiais os seus
romances policiais... Fui grande leitor de literatura policial e de
aventuras na época própria, isto é, na adolescência, e até hoje
acredito que é uma leitura utilíssima, por desenvolver as faculdades
de raciocínio e o exercício da inteligência. Sendo, por outro lado,
um racionalista de nascença, jamais me interessei pela ficção
científica, na qual a ciência é fictícia, e a ficção pretende ser
científica. É, aliás, uma espécie já agora superada, com vantagem,
pelo cinema e pela televisão.
Quais as dificuldades essenciais do crítico de
poesia? Affonso Romano de Sant’Anna e Ivan Junqueira são ainda seus
nomes a destacar no Brasil? O sr. aprecia o trabalho de Renata
Pallottini?
Ao contrário das aparências e dos pressupostos aceitos, a poesia
está tanto no poeta quanto no leitor: cada leitor tem os seus poetas
"orgânicos" e cada poeta os seus leitores cognados. Ninguém é grande
poeta para todos os leitores, nem cada leitor vê grandes poetas em
todos os que escreveram no passado ou escrevem em cada momento. No
quadro contemporâneo, os nomes citados pertencem à família
espiritual de Carlos Drummond de Andrade, que é a dinastia
dominadora na literatura brasileira. Como tal, eles a prolongam,
acrescentando-lhe os traços fisionômicos que se acrescem de geração
para geração, às vezes modificando as linhas primitivas. Em teoria,
a continuidade deveria ter sido assegurada por João Cabral de Melo
Neto nos anos 40, mas, como ele mesmo reconhece e até reivindica,
não é poeta de sensibilidade brasileira. Houve, no caso, uma ruptura
genética: ele é único na sua categoria, não tendo ancestrais, assim
como não vai deixar descendentes. A linhagem drummondiana (que vem
de Gonçalves Dias, se não de Tomás Antonio Gonzaga), ligada a Manuel
Bandeira, como antecessor imediato, sofreu então um lapso
temporário, para reaparecer em Affonso Romano de Sant’Anna e Ivan
Junqueira, poetas cujo DNA poético ainda não está plenamente
identificado justamente pelo que representam como expansão de
horizontes mentais e formas de sensibilidade. É também o que
acontece com Renata Pallottini, cuja importância e alta qualidade
poética venho enfatizando desde os seus primeiros livros, conforme
se pode ver na série dos Pontos de vista. Essa é a grande trindade
da poesia brasileira contemporânea, simétrica, em perspectivas
históricas, à famosa "trindade parnasiana" de um retrato célebre
(Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira). Podem-se
imaginar retratos ideais de outras "trindades": a modernista, com
Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; e a
romântica, com Gonçalves Dias, Castro Alves e Machado de Assis.
Um crítico literário serve-se de critérios
científicos? Ou, como parece sugerir sua coleção Pontos de vista,
ele conta principalmente com a intuição precisa apoiada em uma
extensa erudição?
A aspiração por uma crítica científica é a indestrutível quimera do
pensamento literário. Este último é de natureza filosófica e
consiste num exercício lógico da inteligência, sendo, por definição,
necessariamente submetido e variável (de crítico para crítico). A
crítica perderia utilidade e até justificação se alcançasse
categoria científica e pudesse emitir julgamentos definitivos e
irrecorríveis sobre obras e autores. Seria o fim da literatura.
Claro, quem sabe só literatura não sabe nem literatura: a qualidade
e eficácia da crítica medem-se pela extensa erudição a que você se
refere. Contudo, a erudição nada vale sem intuição e vice-versa: T.
S. Eliot dizia que só há um método crítico, que é ser muito
inteligente. Há eruditos pouco inteligentes, ai de nós, e ignorantes
ricos de inteligência nativa...
Ler é mais difícil que escrever?
Ler, no sentido de saber ler, de compreender o que se lê para além
do que está escrito, perceber a significação do que as palavras
simplesmente veiculam, tem suas sutilezas específicas, porque a
leitura assim encarada já é escrita, escreve-se a si mesmo durante o
processo, projeta-se sobre o futuro texto que ainda está por ser
escrito. A leitura é uma forma de escrita, assim como a escrita é
uma forma de leitura.
Rosane Pavam é editora de Livros do Jornal
da Tarde, subeditora do Caderno de Sábado
(in Serviço da Agência Estado em
colaboração com o Jornal da Tarde 17/2/96)
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