Wilson Martins
Prosa & Verso, 04.01.97
A teoria e a prática do
soneto
O exercício do poema de forma fixa teve significados diferentes
para os modernistas e a Geração de 45.
Se um soneto sem defeitos vale por si
só um longo poema (Boileau dixit), deve-se compreender que a idéia
central está na cláusula excludente, não na comparação pura e
simples: poema de forma fixa, o soneto, sob pena de se desfigurar
como soneto, só se pode equiparar em qualidade às outras composições
e não apresentar nenhum defeito segundo as suas próprias
especificações técnicas. Forma fixa, mas não rígida, como pretendem
os espíritos simplistas e simplificadores que o encaram como inimigo
pessoal. Todos os poemas de forma fixa são parnasianos, no sentido
de que se fundam na disciplina intelectual e na intransigência do
rigor: como dizia Théodore de Bainville no tratado clássico da
matéria, não há liberdades poéticas.
Às dificuldades genéricas, o soneto
acrescenta a brevidade (de ordem material) e a organicidade, de
ordem espiritual, porque não se trata apenas de escrever 14 versos
distribuídos em dois quartetos e dois tercetos para obter o soneto:
é preciso que as estrofes obedeçam a uma coerência de concepção e
pensamento (da qual a tão malsinada "chave de ouro" é a conclusão de
um silogismo). Claro, Petrarca propôs-lhe o modelo paradigmático e
por ele se guiaram os puristas posteriores, mas, com o correr dos
tempos, a perfeição originária acabou por parecer monótona, como
sempre acontece, e o esquema canônico passou a aceitar modificações
de estrutura. Mesmo parnasianos acima de qualquer suspeita, como
Olavo Bilac e Guimarães Passos ("Tratado de versificação", 1905),
admitiam variações mais ou menos comparáveis às variações das
igrejas protestantes de que falava Bossuet.
Alguns autores datam do século XIII a
criação do soneto, com o trovador Girard de Bourneuil (morto em
1278), passando da França para a Itália, e, de torna viagem, da
Itália para a França desde o século XVI. Sobre o tema, e a propósito
dessa data na história de nossa poesia que é a tradução da "Lírica"
de Dante por Jorge Wanderley (Rio: Topbooks, 1996), Guilherme
Figueiredo escreveu dois artigos brilhantes em que se identificou a
presença do soneto com a sensibilidade humana e o sentimento poético
("A invenção do soneto" e "Ainda a invenção do soneto". O GLOBO, 15
e 22/8/1996). Nesse contexto, não fica mal lembrar o livro dedicado
por Melo Nóbrega ao mais célebre de todos, estudo de erudição e
empatia poética a que sempre vale a pena voltar ("O soneto de Arvers",
2 ed., 1957) - página pungente, lembra Guilherme Figueiredo, em que
Félix Arvers "se lamenta de que a fidelidade da mulher do próximo a
impossibilitava de compreender sua declaração de amor".
Os historiadores da literatura já lhe
desvendaram a identidade civil, mas os leitores de poesia preferem
viver para sempre no mistério, repetido, de geração em geração e de
poeta para poeta, com relação às mulheres que não se reconhecem em
outras tantas histórias de amor impossível. Melo Nóbrega passou em
revista as incontáveis traduções e até paródias desrespeitosas que
fazem do soneto de Arvers um mito literário (em que muitos espíritos
azedos já descobriram incontáveis defeitos...).
O soneto "italiano", que se
transformou em soneto "inglês" pelo prestígio de Shakespeare,
"italiano" continuou para o resto do mundo e pelos tempos afora. É o
soneto clássico, petrarquiano e camoniano, escrevia Olavo Bilac, "em
versos decassílabos ou heróicos. Mas, nunca houve regras fixas para
a colocação das rimas dos quartetos e tercetos, se bem que a
colocação mais geralmente seguida tenha sido (...) o primeiro verso
com o quarto, o quinto e oitavo; o segundo com o terceiro, o sexto e
o sétimo; o nono com o undécimo e com o penúltimo; o décimo com o
duodécimo e com o último".
Boileau mostrava-se sensível à
musicalidade das rimas, referindo-se aos sons que surgiam e se
respondiam em diversos momentos da estrutura rítmica, dando a pensar
que o verso chamado branco já é uma descaracterização da natureza
profunda. Há outras variações, reconhecia Bilac, como, por exemplo,
a inversão das estrofes ou sua consolidação num bloco único, com ou
sem o dístico final dos ingleses. O soneto, na sua enigmática
perfeição e aparente facilidade, continua a ser uma tentação
permanente, não só em poetas como Alphonsus de Guimaraens Filho, que
com ele se identificou ("Todos os sonetos". Rio: Galo Branco, 1996),
mas também nos que praticam com mais regularidade e maior
espontaneidade a poesia "moderna", isto é, o verso livre em todas as
sua modalidades: Antônio Brasileiro e Ruy Espinheira Filho, cada um
com a sua "Antologia poética" e ambos editados em 1996 pela Fundação
Casa de Jorge Amado, em Salvador, em coedição com a Copene,
Petroquímica do Nordeste S.A.).
Os dois últimos são "modernos" no
sentido genérico da palavra, posteriores ao esteticismo da Geração
de 45 a que, pelo menos cronologicamente, pertence Alphonsus de
Guimaraens Filho. O Modernismo realista e regionalista, repudiado
pelos poetas de 45, retorna com Ruy Espinheira Filho e Antônio
Brasileiro, para nada dizer do caçador solitário que se chama João
Cabral - e o simbolismo psicológico a que os modernistas eram
estranhos prolonga-se marginalmente na obra de Alphonsus de
Guimaraens Filho.
Nesse contexto, a prática do soneto
tem significações diferentes: é um exercício espiritual neste
último, e um exercício artesanal nos outros dois. Mas todos se
identificam pela presença de dois valores a que os modernistas e o
quarentacinqüistas se mostravam indiferentes: o Tempo e a Morte, os
primeiros porque identificados com a permanência ilusória do
presente, e os segundos pela perpetuidade livresca do passado
abstrato.
Assim, o que varia são as prospecções
que soubermos aplicar na leitura de uns e de outros.
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