Wilson Martins
Prosa & Verso, 26.04.97
Um poeta da terra
nordestina
Soares Feitosa ("Psi, a penúltima".
Salvador: Papel em Branco, 1997), poeta da terra nordestina, não
pelo pitoresco exótico, mas como integração pessoal e orgânica, como
parte física e palpável do Brasil, como visão ao mesmo tempo épica e
lírica do rincão natal. Pertence à família dos nossos poetas da
terra, os Joaquim Cardozo, Ascenço Ferreira, Raul Bopp, Juvenal
Galeno, Thiago de Mello, mas, é preciso dizê-lo, com amplidão muito
maior no que se poderia chamar a incorporação cósmica.
Segundo a frase célebre, é um homem
para quem o mundo exterior existe, não como paisagem ou quadros de
uma exposição, mas como bloco existencial de matas e rios, pássaros
silvestres e animais domésticos, homens e mulheres em estreita
convivência com cavalos e cabras, burrinhos de carga, a família e o
meio, cenas da infância, as estações do ano, humanidade e ecúmeno de
que faz parte, expressa, aqui e ali, com fervor patriótico. E,
dominando tudo, o fator catalítico do tempo que passa e do tempo que
dura.
Para ele, a Pátria são os caminhos que
pisa, as armadilhas de caçar passarinhos, as cobras que rastejam, as
abelhas que produzem cera e mel, a paisagem esturricada, as
montanhas e as árvores que conhece pelo nome, as frutas e os campos,
o sofrimento do homem, a tragédia do clima e o milagre da chuva, a
resistência resignada com que aquele mundo enfrenta a adversidade, a
recompensa das manhãs e a impiedade do sol, o sentimento de abandono
em que a região é mantida. Não são temas "literários" e o ufanismo
de Soares Feitosa nada tem de simplório: é, antes, com amargura e
revolta que encara a realidade:
"Auriverde pendão de minha terra, que
a brisa do Brasil beija e balança... famintos do meu Brasil precisam
sonhar com um pão. Não há país como este, em se plantando, ó
Caminha, sim, plantaram, plantaram nas algibeiras onanistas do
metal. Em se plantando, seu Caminha, o que dá, não dá, o que deu,
não deu, nunca deu... o que deu, o gato comeu, o que deu, o rato
roeu".
Os motes gerais dessa poesia, nas suas
próprias palavras, são a infância, o chão, os matos, as pedras, os
céus, as águas, o sertão, os bichos grandes e miúdos, oficinas e
tralhas, cheiros e sons! mofumbos & alecrins, perfumes — tudo
expresso no idioma dos grandes poetas universais, ecos da poesia
primeva, Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo,
porque Soares Feitosa não é um "ingênuo" do romanceiro popular, não
é o falso sertanejo da cidade nem o verdadeiro sertanejo iletrado,
mas o sertanejo autêntico hipostasiado em poeta culto.
É a "matéria do Nordeste" que forma a
substância dos seus cantos épicos e dos seus transportes líricos,
como na extraordinária "Antífona", uma das mais belas odes jamais
escritas em língua portuguesa.
É poema a ser lido por inteiro e em
voz alta:
"Venho de outras terras, meu capitão, não sou da beira do mar, eu
venho desd’onde uma bola de fogo, volúpia de luz, volúpia de cor,
cavalgava o horizonte e desabava, queda brusca por detrás da
serrania (...)".
As suas raízes humanas e poéticas,
como as de Homero (literalmente evocado), estão nos cantadores das
gestas populares:
"Acudam-me os cantadores: Ignácio da Catingueira, negro e
escravo; Romano da Mãe d’Água; vocês também fundaram o galope, a
cantoria; Pinto do Monteiro, Otacílio, dos Batistas, a batistada
toda, venham todos (...).
Leiam o saboroso "Rio Macacos":
"Rio?! Quem chamaria aquilo de rio?
Era apenas uma grota risível (...)", explicando nas notas didáticas
que acompanham todos os poemas: "Rio Macacos, nem sei se ainda
existe, mas lhes garanto que água ele não tem!". Soares Feitosa
traduz o folclore em versos literários, escritos num idioma culto,
sem concessões tolas ao populismo de carregação, assim escapando dos
lugares-comuns previsíveis e estafados:
"O sol, ainda ferro de brasa, chiando como um ferro de ferrar
boi, soltando chispas, para bater a poeira, as fagulhas do dia,
abanar-se um pouquinho da tarde quente, se esfregava nos penachos da
palmeira mais alta (...)."
A mais a seca, maldição divina,
seguida pelo milagre da água: "As águas em minha terra são
efêmeras,/ parideiras, fêmeas, efêmeras eram as águas...". Com a
primeira chuva, explodem as sementes mais apressadas: "Noutra
chuva,/ outra leva nasceu (...) e mais outra, sempre mais uma leva/
de sementes nasciam e sucumbiam/ um raspar das enxadas (...)".
[Panos Passados] e [Dormências].
Anexado ao volume, Soares Feitosa
oferece ao leitor o contacto físico com o Nordeste e o Brasil
antigo, sob a forma de um envelope com sementes de
imburana-de-cheiro, por ele mesmo torradas e moídas: é o perfume da
terra que perpassa pela obra, não só em sua materialidade física,
mas também como representação por assim dizer olfativa da poesia da
terra.
Trata-se, então, de um poeta
sertanejo, limitado ao regionalismo típico das letras? Longe disso:
é um poeta lírico de harmônicas universais, inclusive as sugestões
místicas; é também um saudosista, na medida em que são por natureza
saudosistas os temas históricos e as evocações sentimentais,
inspiração para belos poemas, como, por exemplo, "Perdidos e
achados".
Não podemos tampouco ignorar-lhe o
lado ultra-moderno, criador do "Jornal de Poesia" pela Internet, em
1996, por não haver encontrado nenhum texto de poesia em língua
portuguesa pelas ondas etéreas da eletrônica. E agora lá estão eles,
os poetas, consagrados e principiantes, o que já é, em si mesmo, uma
forma de poesia: a poesia do nosso tempo.
Leia a obra de Soares
Feitosa
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