Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



10.11.97



Leituras e releituras
 

 


 

Da série de conferências literárias reunidas por Cassiano Nunes em Vinte vezes Cassiano (Penedo, AL/Brasília: Fundação Casa de Penedo/Thesaurus, 1997) à biografia de Adolfo Caminha por Sânzio de Azevedo (Fortaleza: UFC, 1997), algumas obras recentes propõem a crítica como releitura, passando pelo mestre da leitura que se chama José Paulo Paes (Os perigos da poesia e outros ensaios. Rio: Topbooks, 1997) e pelo pequeno ensaio em que Maria Aparecida Silva Ribeiro estuda Mário de Andrade e a cultura popular como "leitor modelo" (Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura/Câmara Brasileira do Livro/The Document Company-Xerox, 1997).

Ela o encara como "leitor respeitoso, reverente", primeira incorreção com referência a um escritor cujas leituras definem-se, antes de mais nada, pelo espírito crítico e, por isso mesmo, irreverente; a segunda, consiste em afirmar, logo nas primeiras linhas, que "poucos foram os intelectuais brasileiros que tivessem exercitado tanto e com tamanha paixão a prática da leitura". Basta lembrar, apenas entre os
contemporâneos, Sérgio Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Tristão de Athayde, Agripino Grieco, Gilberto Freyre e Fernando de Azevedo, para demonstrar que não se tratava de singularidade pessoal.

Os delicados eflúvios de tédio que se exalam do livro resultam, precisamente, da atitude de tímida reverência com que a autora se coloca, ela própria, em face do modelo, pesquisador que, segundo acredita, lançava um "olhar comovido [...] sobre o elemento da cultura popular." Ela mesma comete alguns contra-sensos de leitura, como ao glosar a palavra "palerma" com que Mário de Andrade, lembrando o seringueiro amazonense, qualifica o livro que tinha nas mãos. E, se dizia ler "desgraçadamente" (para indicar enormes quantidades) isso não significa "não atribuir ao texto a graça da predileção, do aprofundamento", seja qual for o sentido desse comentário. Da mesma forma, quando desencorajava o empréstimo dos seus livros com a conhecida advertência irônica pregada nas estantes, ela entende que, ao contrário, estava convidando os leitores para a sua casa.

Em ensaio de 1972, agora incluído no volume acima referido, Cassiano Nunes indicava a descoberta do Brasil como uma das características, talvez a principal, do nosso modernismo, colocando em perspectivas mais amplas e propriamente críticas o que o estudo de Maria Aparecida Silva Ribeiro tem de incompleto e fragmentário: "Eu tenho orgulho de dizer que sou brasileiro abrasileirado", escrevia ele em 1925 no Jornal do Comércio do Recife, em artigo que, para os bons entendedores, significava que os nordestinos não tinham o monopólio nem do nacionalismo, nem da autenticidade nacional. Ficava assim lançada a ponte da cultura popular e regionalista, matéria destinada, nos anos seguintes, ao enorme desenvolvimento que se conhece. E da qual Jorge de Lima, pelo menos na fase propriamente modernista da sua carreira, seria um dos representantes paradigmáticos.

Tanto José Paulo Paes ("Revisitação de Jorge de Lima") quanto Cassiano Nunes ("A revelação da alma de Jorge de Lima") entregaram-se à releitura de um poeta que, já agora, pertence mais à história do que à permanência da poesia brasileira. Seu trabalho, diz Cassiano Nunes, "dá a impressão que a vastidão de seu talento e ambição literária vai de mãos dadas com a ingenuidade evidente de um adolescente provinciano." Mimético do parnasianismo na juventude, do
modernismo na década de 20, do "espiritualismo" (como então se dizia) na década de 30, com a "restauração da poesia em Cristo", do formalismo dos anos 40, inclusive na volta ao soneto, que era, implicitamente, a volta ao parnasianismo da adolescência e, por aí, do seu desdobramento "clássico" com a símile-epopéia que é Invenção de Orfeu, - nenhum dos seus contemporâneos se integrou tão completamente nas tendências de cada momento, dando por algum tempo a ilusão de um espírito que se renovava continuamente.

Em Invenção de Orfeu, coroamento natural de sua obra, o mimetismo chega à paráfrase, se não à transcrição pura e simples, dos grandes modelos (inclusive de segunda mão, através das empedradas traduções de Odorico Mendes, aliás elogiadas pelos teóricos do Concretismo), conforme Luiz Busatto demonstrou em livro de 1978, cuidadosamente ignorado pela crítica. Foi, tudo bem considerado, uma
"memorável catástrofe", para lembrar as palavras de Virginia Woolf a respeito do Ulysses - ou, no julgamento de José Paulo Paes, pode-se falar em malogro, mas, no caso, "trata-se de um grandioso e desafiante malogro que convida à perene revisitação." Praticante do surrealismo tardio, surpreende pouco que Murilo Mendes fosse grande admirador de
Invenção de Orfeu, ligado, como estava, a Jorge de Lima por afinidades mais profundas do que se tem até hoje percebido.

São dois poetas que caem periodicamente no esquecimento, de onde periodicamente procuram resgatá-los as bem intencionadas tentativas de recuperação. Sua obra pertence mais aos seus amigos do que aos amigos da poesia brasileira, ou, se quisermos, cada um terá o Jorge de Lima e o Murilo Mendes que merece.

Na obra de Adolfo Caminha, o paradoxo está em ter sido epígono do romance realista, tendo, entretanto, escrito, com O Bom-Crioulo (1895), um dos seus livros exemplares. A temática homossexual, lembra Sânzio de Azevedo, já fôra tratada no episódio de Léonie e Pombinha (1890) por Aluísio Azevedo, aliás por meio de alusões ao mesmo tempo salazes e pudibundas, mas sem os reflexos moralizantes de Adolfo Caminha no romance de 1895. Lúcia Miguel-Pereira considerava-o "abjeto". Referência obrigatória quando se trata do realismo brasileiro, já não é leitura costumeira por parte do público, mesmo porque as suas ousadias finisseculares não escandalizam mais ninguém.

 

 

 

 

 

24/08/2005