Wilson Martins
26.05.97
Herói da Nossa Gente
Trabalho de circunstância gorado no
nascedouro, aparece agora como subsídio para a história literária a
antologia poética de Mário de Andrade organizada por Cecília
Meireles (Cecília e Mário. Rio: Nova Fronteira, 1996). Poetas por
poetas sejam lidos, reivindicava um deles, o que, na prática, pode
redundar em resultados decepcionantes.
É curioso que, para ler Mário de Andrade, ela partisse de meticuloso
levantamento lexicográfico, com relativo desinteresse pelas
estruturas, digamos, técnicas dos poemas. Dir-se-ia que, para ela
também, o poema era feito de palavras.
É certo que lança como princípio geral
de interpretação o que, de resto, já haviam percebido os críticos e
leitores comuns, isto é, que "há muita autobiografia na sua obra
literária, em prosa e verso" - o advérbio, no caso, sendo apenas um
recurso de amenização retórica. O verso famoso sobre as suas 350
personalidades pode servir de exergo para configurar-lhe a forma
mentis enquanto criador intelectual, o que não exclui, como se lê no
mesmo poema, a nostalgia da impossível unificação suprema no fim dos
tempos.
A obra imatura, segundo a
classificação editorial adotada no plano de bibliografia definitiva,
é apenas isso, escrevia Cecília Meireles: "Hoje, esses primeiros
poemas [...] mostram-nos mais o homem que o poeta", forma delicada
de dizer, claro está, que se trata de composições claramente
inferiores ou secundárias. Contudo, ela nos situa no
primeiro degrau da biografia: Um homem sensível, profundamente
cristão, desgostoso com o orgulho e a vaidade que destróem o mundo,
sofrendo pelos mortos, os mutilados, as criancinhas, suspirando por
um tempo compreensivo, de homens sem egoismo, por uma reconstrução
da humanidade, com a imagem da primavera sobre as ruínas que definia
a
própria coletânea desses versos [...]
Retrato do artista quando jovem e
retrato imaginário do artista maduro nos diversos perfis de sua
persona que deliberadamente desejou transmitir para a posteridade. E
que acabou reaparecendo, em ilusão de ótica livresca, no aliás
admirável estudo de Michel Riaudel incluído na recente edição
francesa do Macunaíma: retomando
sugestões primitivas, logo abandonadas pelo autor, Michel Riaudel vê
no "herói da nossa gente" um "herói latino-americano, do terceiro
mundo, representante do Sul alienado, marginalizado" - cascata de
anacronismos críticos e historiográficos que acabam por despojar
Macunaíma do único "caráter" com que foi apresentado desde a
primeira linha (Macounaima, le héros sans aucun caractère. Trad.
Jacques Thiériot. Ed. crítica coordenada por Pierre Rivas. Paris:
Stock/Unesco/ALLCAXX, 1996).
Michel Riaudel imagina que Mário de
Andrade desejava ser, acima de tudo, um cidadão do mundo, o que se
prova por "buscar uma fonte etnográfica alemã falando de lendas
situadas nos confins do Brasil e da Venezuela para escrever uma
paródia risível e atraente do símbolo heróico nacional." O paradoxo
está em que Mário de Andrade
encontrou nas fontes internacionais a matéria brasileira de que
necessitava, porque, aos seus olhos, a coletânea de Koch-Grünberg
não era um livro alemão. Sobre essa e outras fontes do Macunaíma,
v., na edição francesa, "Macounaima et Mário de Andrade", estudo
essencial de Telê Porto Ancona Lopez, cuja edição crítica foi o
texto utilizado para a tradução de Jacques Thiériot, que assim
retocou a sua própria de
1979.
Nas palavras desse mestre de nossas
literaturas que é Pierre Rivas, "a translação de uma obra
genoclástica como o Macunaíma num sistema tão ordenado como a
literatura francesa" choca-se com os seus automatismos mentais: "a
tradição intelectual (e hexagonal) de incorporar e reduzir o Outro
ao Mesmo, o etnocentrismo, fazem com que a interpretação francesa
funcione no modo do como se, que é a maneira pela qual lê a
literatura latino-americana."
Acrescento, por minha conta, que esse
e outros livros "exóticos" (sem excluir os de Jorge Amado) concorrem
para confirmar no espírito francês a idéia preconcebida sobre as
literaturas e os países tropicais, tudo enquadrado no universo ao
mesmo tempo curioso, primitivo e pitoresco da picaresca e das obras
menores, como concluía com suficiência o crítico jornalístico citado
por Pierre Rivas. Nessas perspectivas, é inevitável que os
mal-entendidos se multipliquem.
Michel Riaudel, por exemplo, estranha a ausência do "componente
negro" em Iracema, da mesma forma por que limita ao Pau-Brasil e ao
Manifesto Antropófago as "duas cartas do movimento modernista",
cometendo, com isso, um engano de hierarquia intelectual e
cronologia literária ao ignorar as duas verdadeiras "cartas" do
movimento, quero dizer, o "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia
desvairada e o tratado mais ambicioso, A escrava que não é Isaura.
Podemos perdoá-lo, porque a própria Cecília Meireles, que tudo
indica não haver conhecido o segundo texto, tresleu o primeiro,
classificando-o "mais como tentativa de ensaio do que poema",
desleitura que, surpreendente quanto seja, tem sido repetida, aqui e
ali, por alguns espíritos simples.
Não era poema, nem tentativa de
ensaio. Tudo resulta, creio eu, da mal-inspirada decisão de
originalidade tipográfica que, na primeira edição,
inconsideradamente repetida nas seguintes, deixou de justificar a
margem direita do texto, o que, àquela altura, deve ter parecido o
cúmulo do modernismo. Morigerado pela sabedoria da
idade, Mário de Andrade manifestou mais tarde arrependimento pelas
passagens pornográficas do Macunaíma e pelos excessos da reforma
lingüística. O período do desafio como norma de ação parece haver-se
encerrado, precisamente, com o aparecimento do livro em 1928.
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