Wilson Martins
Os Brasilíadas
(Caderno G, Gazeta de Curitiba, 16 de março de
1998)
Depois de variadas tentativas e erros
(em que o número de erros igualou exatamente o das tentativas), foi
finalmente escrita a epopéia da nacionalidade brasileira,
prolongamento e diversificação da que se cristalizou para sempre nas
estrofes brônzeas dos Lusíadas (Gerardo Melo Mourão. Invenção do
mar. Rio: Record, 1997).
Ao tempo de Camões (e muito depois), o
Brasil era apenas uma realidade geográfica, "Terra de Santa Cruz
pouco sabida", já cobiçada, entretanto, pelo "pirata Francês", rica
do "metal que a cor tem do louro Apolo", e habitada por "várias
gentes, em ritos e costumes diferentes". A epopéia nacional
portuguesa foi condicionada pelo mar ("O mar salgado, quanto do teu
sal / São lágrimas de Portugal!", enquanto o Brasil determinou-se
pelo signo da terra, diferença substancial que fixou o destino e a
natureza das duas nacionalidades: epopéia da navegação, de um lado,
e, de outro, epopéia da conquista territorial.
O título do volume indica que o
tropismo marítimo de Portugal predominou no espírito de Gerardo Melo
Mourão sobre o tropismo telúrico do Brasil: é nisso, entretanto, que
Brasilíadas e Lusíadas diferenciam-se entre si, em histórias
paralelas, embora complementares. É, aliás, o que se lê em dois
belos versos: "E os que nascem no mar são portugueses / e o mar é o
chão maior de Portugal". São trajetórias marcadas, de um lado e de
outro, por nomes emblemáticos, assinalando-lhes momentos e episódios
cruciais. Gerardo Melo Mourão acentua-o expressamente desde as
linhas preliminares: "O texto está feito com nomes e nomes e creio
na força dos nomes de lugares e pessoas e coisas". Não apenas nomes
estereotipados das grandes personalidades cristalizadas pela
história em poses estatuescas, mas também pelos anônimos que, por
paradoxo, deixaram o nome ligado à "primeira manhã do mundo", como
diz o poeta ao evocar a nomenclatura imortal da "escritura lavrada
no porto seguro da Vera Cruz": "E o Capitão mandou à terra Nicolau
Coelho ["primeiro cristão a pisar o chão achado"] - "e o Capitão
mandou à terra Afonso Lopes", para nada dizer da lápide encontrada
numa igreja da Bahia: "Aqui jaz Afonso Rodrigues, natural de Óbidos,
o primeiro homem que se casou nesta terra".
Era o momento lustral da criação do mundo:
O Creador creou o mundo
E Diônisos e Henrique e João e Manuel
e Cristóforo e Dias e o Gama e Pedrálvares e os outros
mediram o mundo e deram nome
às coisas e aos lugares e ás pessoas do mundo
em terra e mar []
Logo em seguida chegaram as "naves
populosas de soldados / de santos, heróis, bandidos, aventureiros, /
lavradores, espadachins e degredados, / oficiais de ofícios do couro
e do ouro, / da madeira, dos panos, do ferro, / do cobre, da prata e
do latão - ourives, / algibebes, aljubeiros, tanoeiros []".
Escrito em dicção refinada e liberta
do fascínio camoniano que paralisou tantos esforços anteriores, o
ritmo do poema é marcado por versos de grande beleza e poder
evocativo: "a graça nupcial das caravelas" - caravelas em que os
marinheiros cavalgavam as "ladeiras bravias das tempestades / no
chão de sal das águas bravas". Ou então, introduzindo-nos no
centripetismo da história brasileira, os conquistadores "pisavam
duro o chão das cordilheiras e pisavam a cova dos cartógrafos / dos
papas e dos reis com seus tratados. // o cascalho e a poeira dos
caminhos / manchavam desmanchavam tordesilhas / e empurravam
fronteiras de papel".
De fato, como ficou dito, se os
Lusíadas cederam à "tentação do Oriente" e com isso conquistaram o
mundo (mas o grande mundo dos Brasilíadas situava-se justamente a
Ocidente), estes últimos entregaram-se ao misterioso chamado do
território desconhecido: "Buscavam horizontes e sonhavam / ouros,
pratas, rubis e diamantes / e uma esmeralda - o Príncipe Esperado".
Aqui, a caminhada histórica é pontilhada de outros nomes
emblemáticos, pois os alvarás de D. Sebastião estabelecem a ligação
com o Brasil: o rei que perdeu um império, criava outro,
involuntária mas automaticamente, no outro lado dos mares. Os
"aventureiros do rei" chamavam-se Borba Gato, Dias Paes, Anhangüera,
Raposo Tavares e até o Amador Bueno, que não quis ser rei do Brasil.
Surgiram, pouco a pouco, os nomes
geográficos, como no poema de Ascenço Ferreira, aqui sugestivamente
evocado - "os nomes que só os nomes fazem sonhar - fazem chorar":
Vila Bela, Lavras da Mangabeira, Juazeiro, Inhamuns, Pajeú de
Flores, Barra Velha, Camaratuba, Ponta Verde, Igaraçu, Ouro Branco,
Ouro Podre, Ouro Velhos, Olinda, Todolossantos, Campanha da Princesa
- tudo isso entrelaçado com os patronímicos que fizeram o Brasil, os
Queiroz, os Magalhães, os Gouveias, os Lopes, os Mellos, os Vieiras,
os Carvalhos, os Buenos, os Ponces, os Camargos, os Teixeiras, os
Tibiriçãs, os Botelhos
fazem a raça, o povo, seus soldados,
os bandeirantes de Piratininga,
e a Nova Lusitânia de Pernambuco;
[]
mestres das artes, profissões, trabalhos
tinham todos o ofício que legaram
aos herdeiros da terra - fazer pátria.
E a fizeram, como Martim Afonso, que,
naufragando, salvou-se numa tábua, "andou roto e faminto por praias
e brenhas / e flechas de antropófagos e rondas da morte / e a morte
e a fome e o naufrágio e o perigo / rondavam e creavam o país" - ou,
ainda, como a cláusula testamentária de Raposo Tavares, que, ao
partir para o desconhecido, resumia em algumas palavras toda a
epopéia brasileira: "indo a caminho da guerra e sendo mortal e não
sabe o que Deus Nosso Senhor de mim fará []".
Tanto quanto os Lusíadas, os
Brasilíadas aceitaram o desafio do Destino, assim como Gerardo Melo
Mourão aceitou e venceu o desafio do grande poema de 1572.
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