Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 26.09.1998



Ouro Parnasiano

 


 

Exceção feita de "Lavoura azul" (1974), todos os livros de José Chagas foram publicados em São Luís, e isso explica que esse grande poeta brasileiro seja visto apenas como grande poeta maranhense. Não tivesse permanecido na província, escreve Sebastião Moreira Duarte na introdução da "Antologia poética" (São Luís/Rio: Edufma/ Topbooks, 1998), "de há muito já teria alcançado o grande público, fazendo-o reconhecido como uma das vozes mais vigorosas da moderna poesia no Brasil".

Nem mesmo a "Poesia reunida" (1980), igualmente publicada em São Luís, conseguiu romper o muro de silêncio. Sua posição nas letras maranhenses, escrevi a propósito, "assegura-lhe a condição de poeta maior no âmbito do estado"; trata-se de saber por quê os diretores da opinião literária ainda não o reconheceram, no plano nacional, na posição que deve ser a sua.

De minha parte, pensava em 1980 e continuo pensando que, em termos de qualidade, supera de longe as limitações provincianas, "para instalar-se nas dimensões mais amplas do provincial, tendo reconduzido nosso lirismo às fontes autênticas da inspiração que são as do homem e da paisagem concretamente existentes no mundo real" (W. M. "Pontos de vista", 10, 1995).

A diferença entre o provincial e o provinciano, nem sempre percebida, pouco tem de geográfico: é diferença de ordem mental. Há espíritos provincianos nas grandes cidades, da mesma forma por que a autenticidade literária condiciona-se pelas raízes provinciais.

Nem todos os poetas federais tiram ouro do nariz, como queria Carlos Drummond de Andrade, poeta ao mesmo tempo federal e provincial, se jamais houve algum. Cabe aquilatar, em cada caso, o legítimo valor de tanta riqueza, que, não raro, é mais "federal", entre aspas, quero dizer, circunstancial e postiça, do que autêntica e de alto teor.

Lá na sua província, José Chagas oferece ouro em abundância... mas é ouro parnasiano num mundo convencionalmente antiparnasiano, abundante em berloques de fancaria. Praticando as regras tradicionais da versificação, não por princípio, mas com evidente espontaneidade, a poesia é a sua forma natural de expressão.

Não é um fabricante de poemas, é um espírito que tem na poesia o seu idioma nativo. O lado negativo dessas qualidades está, por paradoxo, no que têm de irreprimível e indisciplinável, quero dizer, a prolixidade e a repetição. O seu lado positivo está em que José Chagas não tem medo nem da rima, nem dos poemas de forma fixa (nomeadamente o soneto), recursos anatematizados pelos poetas chamados modernos, quase sempre por incapacidade versificatória (um deles, que se chamava Oswald de Andrade, teve, pelo menos, a sinceridade de confessá-lo).

A rima pode ser a "jóia de tostão", como a chamava Verlaine, que, aliás, sempre a praticou, mas, de qualquer maneira, é a nostalgia secreta de todos eles. Pode-se até pensar que "os trocadilhos laboriosos, rebuscados ou simplórios dos concretistas" - escrevi no mesmo artigo de 1980 - "são ainda uma forma dissimulada de rima, homenagem que a hipocrisia técnica e supostamente renovadora presta à virtude poética.

"Sendo, embora, cidadão paraibano, José Chagas é poeta maranhense", palavras de Sebastião Moreira Duarte que devemos tomar no sentido pleno, ou, se quisermos, sentimental: nos poemas da memória (ao pai, à mãe, ao território da infância), ele ainda pertence às suas origens, nem seria compreensível que as renegasse, enquanto nos poemas da maturidade será, creio eu, o poeta mais profundamente maranhense.

Os poemas longos sobre São Luís e Alcântara são de grande beleza, extraordinária sensibilidade e felicidade de expressão. Basta lembrar a delicada sutileza com que evoca a morte de Gonçalves Dias, em "Os canhões do silêncio": "A ilha aguarda a vinda de um navio que nunca mais há de chegar ao porto [...]". Não são menos sugestivas as evocações de Alcântara, cidade em que, "depois de tudo vazio [...] só o silêncio ficou cheio". O grande orgulho da cidade, diz o poeta em imagem fulgurante, "é saber hoje e esperar/ o passado/ que pelo futuro qualquer cidade espera".

É pungente pensar que cidade ainda aguarda a visita do imperador, como a chegada do Messias ou o reaparecimento do D. Sebastião: "Ninguém esperou tanto a vinda/ de um sonhado imperador/ e acho que o aguarda ainda/ seja para quando for". Os soberbos aristocratas locais construíram deslumbrantes palácios para hospedá-lo, cujas ruínas sinistras são a metáfora do Tempo e do Destino. O tempo, justamente, lê-se em "Maré memória", "o tempo é um rio dolente/ que, sem ter menos nem mais,/ não dura só para frente,/ dura também para trás".

Atraído pela vertigem dos saltos mortais, José Chagas não recua dos exercícios de trapézio e contorcionismo, rimando "emergência" com "compense-a", e "pertence a" com "ciência". Exemplos de virtuosismo algo artificial que, entretanto, nos fascina, porque, de fato, "espere o" rima com "mistério" e "explore o" com "território".

Por aí, ele se inscreve numa das tradições do parnasianismo, os jogos vocabulares e o refinamento de expressão, cujo modelo foi lançado em 1857 por Théodore de Bainville com as "odes funambulesques".

Assim, os "modernos" serão menos originais e inventivos do que supõem, pois, de uma forma ou de outra, a poesia não é feita "de palavras", mas da sua música e harmonia, o que lhes acrescenta o que passam e devem ter de poético.

Afinal de contas, pergunta José Chagas em "Os canhões do silêncio, "o que é poesia nova / e o que é poesia antiga?". A lição final de sua obra está em que há poesia e não-poesia, para retornarmos com alguma liberdade à velha formulação crociana.

 

 

 

 

 

26/08/2005