Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Proustianismos


(07/11/98 - Gazeta do Paraná)



 

Pedro Nava tinha uma visão proustiana da existência, a tal ponto que a série iniciada com "Baú de ossos" é, na verdade, um decalque da "Recherche" (Celina Fontenele Garcia. "A escrita Frankenstein de Pedro Nava". Fortaleza: UFC, 1997). Toda a questão, certamente insolúvel, consiste em saber se teria sido o que foi sem a leitura de Proust, ou se, ao contrário, a leitura lhe despertou e configurou a arte literária.

Como lembra Celina Fontenele Garcia, ele próprio dizia que Proust "tivera a força de explicar, ao desarmar a mecânica lancinante desse processo mental da força da memória pura, e da viagem do homem no tempo e no espaço através das sensações".

Em passagem característica, refere-se ao fator de psicologia profunda que lhe desencadeou o processo criador: "Assim quantas vezes viajei, primeiro no espaço, depois no tempo, em minha busca, na de minha rua, na de meu sobrado... Custei a recuperá-lo. (...) Foi preciso o milagre da ‘memória involuntária’". Trata-se, como se sabe, da grande
invenção ou descoberta romanesca de Marcel Proust, para sempre ligada ao seu nome e da qual decorrem os elementos estruturais de toda a obra. No que se refere à construção dos episódios, a memória involuntária é despertada por situações do cotidiano, pois o livro inteiro, escrevia Proust, cidades e personagens, tinha saído da chávena de chá que lhe restituiu num fulgor de sensibilidade os dias perdidos e a infância.

A exemplo de Proust, diz Celina Garcia, "Nava encontra o passado por meio de ‘sua madeleine’, na violência e subitaneidade da lembrança (...). Em sua obra, ele põe um limite bem claro entre memória voluntária e involuntária (...): Veneza, para solo desigual de Fortaleza, ou rabanetes, para o Colégio Anglo e a infância; a batida do Ceará, para a casa da avó Nanoca; o cheiro de remédio, para a casa da rua Aristides Lobo; o cheiro de cravo, para a mãe". Nava o acompanhava, ainda, em peculiaridades não menos proustianas, como a evocação da topografia social de Juiz de Fora, pela nostálgica polarização de Combray, "divisão do seu destino em duas direções".

Note-se, com Celina Garcia, que o pastiche e os plágios confessados fazem parte dos processos habituais de Pedro Nava: "Escrever é, pois, dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea. (...) Como Nava usa essa intertextualidade? Através dos pastiches e dos plágios confessados". Tanto quanto a "Recherche", são vingadores ajustes de contas os livros de Pedro Nava, o que ele em nenhum momento pretendeu ocultar. Isso é particularmente sensível nos perfis de parentes, amigos, professores e colegas com que foi assinalando as sucessivas "estações" iniciáticas de sua vida, como nesta água-forte, entre tantas outras: "A herança do bisavô foi a legenda que deixou a mais o gênio atroz que, com mutações especiais, passou para os filhos. Tia Regina era religiosa, praticava a virtude - mas com a intolerância de um Torquemada. (...) Minha avó Maria Luísa, que foi mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para escravas e crias, amiga perfeita de poucas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem - era de boca insolente e bofetada fácil. Te quebro a boca, negra. E quebrava".

Os dois últimos volumes são claramente inferiores aos precedentes, tendo substituído a técnica literalmente obrigatória de "transformar pessoas em personagens" pelo recurso primário da polêmica retorsiva. Perdeu-se, com isso, o tônus estilístico que até então vinha mantendo. Na realidade, escreve Celina Garcia, "o sentimento que vem em primeiro lugar é o da vingança, e dependendo do grau da ofensa, o esquecimento. Quanto ao perdão, conforme declara em várias ocasiões do ‘Baú de ossos’, não perdoará jamais a quem perseguiu um criança indefesa".

Isso explica que haja encontrado num clássico do internato a prefiguração de sua própria passagem pelo Colégio Anglo-Mineiro: "Nava apresenta uma tradução livre das palavras de Raul Pompéia, ao descrever a solidão vivida no internato pelo narrador/Sérgio", sendo que, do romance para as memórias, as correspondências peripeciais se
sucedem num decalque tão evidente quanto o das memórias com relação ao romance de Marcel Proust.

Seria errôneo concluir disso tudo que Pedro Nava apenas "imitava" os autores que lhe haviam aberto os caminhos da imaginação e da sensibilidade. No caso, trata-se de fenômeno mais profundo, misterioso encontro acidental de espíritos separados, mas semelhantes. Houve numerosos proustianos antes de Proust, assim como Freud creditava os escritores pela invenção da psicanálise - por ele simplesmente "codificada" em sistema científico. Proustianos brasileiros anteriores a Proust foram Raul Pompéia e o Machado de Assis de "Dom Casmurro", este último procurando recuperar o tempo perdido pelos mecanismos da memória, como ocorreria mais tarde no romance francês. São famílias espirituais espalhadas pela República das Letras, identificando-se entre si por formas comuns de temperamento e traços sinaléticos inconfundíveis. Todos trabalharam com a matéria comum do "tempo
perdido", que só a arte pode recuperar. Todos manipulam o tecido morto do passado, escreve Celina Garcia com outras palavras, há muito
transformado em "coisa mineral", cada um deles lidando com essa matéria inerte na medida e com as possibilidades do seu gênio individual.

Nava demonstrou, mais uma vez, que não há memória sem imaginação e sem memória involuntária. Nem literatura sem um estilo de alta qualidade.
 

 

 

 

 

 

30/08/2005