Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 23.01.1999



Cabral por ele mesmo 


 


 

O poeta não escolhe, nem pode escolher, os seus leitores; cada leitor escolhe os seus poetas de eleição, isto é, aqueles de quem se reconhece semelhante pelo temperamento e cultura, afinidades
eletivas ou identidade psicológica. É subjetivo e arbitrário dizer de um deles que é o "maior poeta brasileiro" ou o "maior de todos os tempos"; a prova está em que, para outros grupos de leitores, tal singularizado poeta "não diz nada", a "corrente" não se estabelece.

É o que João Cabral de Melo Neto exprime com a sua lucidez habitual: "Literatura não é só o ato de captar na obra literária uma determinada coisa: há a contraparte, que é a capacidade de comunicar a coisa captada. (...) ... o critério para saber se a coisa foi bem expressa é justamente a possibilidade de que ela tenha sido comunicada a outras pessoas além do artista".

A verdade, porém, é que, ao contrário do que se pensa, a "comunicação" é fenômeno passivo e não ativo, ocorrendo apenas nos que estão em condições de recebê-la: é um efeito, não uma causa (Félix de Athayde, org. "Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto". Rio/Mogi das Cruzes: Nova Fronteira/FBN/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998).

Daí, acrescenta João Cabral em outro momento, "a impossibilidade para qualquer poeta de prever, precisamente, todos os efeitos de um determinado poema sobre determinado leitor. Ele pode, no máximo, estar certo do efeito do poema apenas em relação a si próprio, como seu próprio leitor’’. Conforme reconhece e afirma, sua personalidade idiossincrásica tornou-o poeta excêntrico nos quadros de nossa literatura: "A poesia brasileira é uma poesia essencialmente lírica, e por isso eu me situo na linha dos poetas marginais porque sou
profundamente antilírico. Para mim, a poesia dirige-se à inteligência, através dos sentidos". E, em outra passagem: "No fundo, sinto que sou um racionalista total."

É, por necessidade, "um poeta de minoria", elevado por seus leitores de eleição à condição de poeta maior. Diga-se, contudo, que, a rigor, todos eles compõem a minoria específica, em termos de audiência, no interior da minoria mais larga que é o público leitor. A glória, quando não é simples questão de moda, é fundamentalmente um mal-entendido: "O que acontece é que no Brasil, depois que você chega a certa idade e cria um nome, compram seu livro, não para ler, compram seu livro para botar na estante e para dizer que compraram".

Poeta para quem "o trabalho da poesia é um trabalho intelectual", seu vocabulário é referencial, não metafórico, recurso de retórica sobre o qual, aliás, tem variado através do tempo. Em 1981, pensava que "a metáfora (era) apenas um dos caminhos da poesia", mas, dois anos depois, encarava como "preconceito" a idéia de que a poesia seja
"transplantação metafórica da realidade". Tendo horror dos sentimentos e da emoção, escreve poesia como "trabalho intelectual", a exemplo do "engenheiro que constrói uma casa", o que só pode
ser expresso em linguagem lógica, acessível por meios igualmente raciocinantes, poesia a ser "compreendida", mais do que assimilada em termos de emoção.

É "escritor para professores", como afirmou em 1989, assunto ideal para teses de doutoramento, que, de fato, se multiplicaram e se multiplicam sobre a sua obra. Não por ser "difícil", como pensa, mas, antes, por ser didaticamente fácil. Tudo isso não vai sem algumas contradições inevitáveis, porque a poesia ou, se quisermos, a literatura como atividade do espírito, é organicamente emotiva. Em palavras de 1958, dizia ele que "a poesia não é linguagem racional, mas linguagem afetiva. Dirige-se à inteligência, sim, mas através da sensibilidade", repetindo o que havia dito em 1953: "Poesia é linguagem afetiva".

E também harmonia vocabular, elegância de dicção, refinamento expressivo. Ora, além de ser "seco" por temperamento, como tem afirmado em numerosas oportunidades, João Cabral tem o "ouvido duro", é antimusical orgânico. Ou, nas suas palavras: "Considero-me antimelódico, mas não antimusical. (...) Para mim, a música é um barulho, aquilo me faz pensar em outra coisa, eu começo a pensar para não estar ouvindo aquilo. (...) Tenho a impressão de que é uma impossibilidade que eu tenho de fixar minha atenção no tempo. Minha atenção é um troço capaz de se fixar em coisas espaciais: a pintura, a
arquitetura, a escultura. Já a música me escapa".

Não seria preciso acrescentar suas declarações em outras passagens: "A grande arte, para mim, é a pintura. Não como teoria: em geral, os pintores são maus teóricos. (...) Ficando nos modernos, eu
confesso que o Cubismo, para mim, é da maior importância. Não só o Cubismo como pintura, mas também como teoria artística. E também toda a pintura abstrata construtivista. Não a pintura abstrata chamada lírica; mas a abstrata geométrica, construtivista, me interessa muito". Coloca Murilo Mendes entre os seus mestres de arte por lhe haver
ensinado "a importância do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical. (...) Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais poética do que a palavra abstrata, e que, assim, a função do poeta é dar a ver (a cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a sentir) o que ele quer dizer, isto é, dar a pensar".

Surpreende pouco a sua simpatia pelo Concretismo, embora com a ressalva expressa de jamais haver escrito poemas concretos, ao contrário de Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo. Mas, sendo uma "poesia para os olhos", sempre o fascinou, diz ele, sem que o influenciasse. Da mesma forma, sente-se estranho à Geração de 45, embora cronologicamente nela se inclua. Seu maior defeito é "ser quase toda ela uma geração de poetas desligados da realidade:
desligados dos temas da realidade (...)".

E o Concretismo? - poderia perguntar o leitor, o que nos reconduz às considerações com que se iniciaram estes comentários.

 

 

 

 

 

30/08/2005