Wilson Martins
Prosa & Verso,
30.01.1999
O cânone brasileiro
Tendo nos grandes mortos a sua matéria
de eleição, o enredo literário distingüe-se da crítica propriamente
dita, cuja função é selecionar, entre os vivos da literatura
corrente, os que a seu tempo se
transformarão em grandes mortos. É assim que se estabelecem os
cânones, tanto em cada literatura quanto no corpo místico da
literatura universal. Contudo, ao contrário do que pretendem as
idéias feitas e as polêmicas de ocasião, nenhum cânone é definitivo
e invariável, embora alguns nomes e obras neles permaneçam através
dos tempos.
O perigo está tanto na precipitação de
tentar substituí-los ao sabor das modas e das ideologias, quanto na
obstinação de mantê-los a todo custo, pela força da inércia e das
convenções, quando já perderam a canonicidade. De fato, escreve João
Alexandre Barbosa num dos magistrais estudos reunidos em "A
biblioteca imaginária" (São Caetano
do Sul, SP: Ateliê, 1996): "Por que relemos certas obras e por que
estas obras sempre oferecem elementos novos à consideração? Obras
como as de Dante, de Shakespeare ou Cervantes suportam há séculos
leituras as mais diferentes e, no entanto, permanecem com núcleos de
interesse inalterados, permitindo aos leitores acréscimos,
modificações, um número cada vez maior de aproximações diferentes.
Por isso mesmo, pode-se dizer que são as mesmas desde que foram
escritas e publicadas e, todavia, são diversas: cada século teve o
seu Dante, o seu Shakespeare, o seu Cervantes, sem que, entretanto,
sejam autores diferentes daqueles que foram lidos e apreciados por
seus públicos imediatos".
A questão, como se sabe, tornou-se de
grande atualidade crítica, em particular nos EUA, onde as chamadas
minorias (feministas, grupos raciais ou políticos diversos)
propuseram polemicamente a revisão do cânone (no singular, como se
fosse um só), a partir de um ponto de vista contraditório em si
mesmo: resultando de consensos seculares e
não-escritos, os cânones são, por definição e natureza, construções
majoritárias do espírito. Claro, de tempos em tempos, alguns nomes e
obras perdem canonicidade, enquanto outros a adquirem, mas o núcleo
do problema é circunstancial e estranho às considerações de valor:
se o cânone da literatura ocidental se compõe de homens brancos,
mortos e de extração européia, isso se deve ao acidente histórico
que fez da Europa a grande matriz literária do mundo, num tempo em
que a maioria dos escritores era do sexo masculino.
É um fato, tão obstinado quanto os
fatos costumam ser. Agora, que outros fatos vieram modificar o
quadro, é natural que os cânones do futuro sejam diferentes dos
anteriores, sem que isso implique a sua erradicação pura e simples
ou a apressada entronização dos nomes do momento. Há obras que,
segundo a frase consagrada, um homem culto não pode ignorar, mas a
verdade é que, vivendo em outros tempos e civilizações, o que se
modifica é o conceito de "homem culto". Estudar as "grandes obras"
nos cursos de literatura, segundo Lionel Trilling, era "uma idéia
muito simples": tratava-se de "superar a ignorância do estudante
acerca das obras clássicas de nossa tradição" - a dificuldade
consistindo, justamente, na semântica das palavras "clássicas" e
"tradição".
No caso brasileiro, escreve João
Alexandre Barbosa, "a formação do cânone literário seguiu, de bem
perto, o próprio desenvolvimento de nossas relações de dependência e
de autonomia com vistas às fontes
metropolitanas. Para tanto, contribuíram os esforços no sentido de
estabelecer um corpus de autores e obras identificadas como
brasileiros e diferenciados das origens européias, em que se
destacavam as portuguesas." Assim se implantou e aos poucos se
consolidou o "nosso" cânone, graças ao trabalho historiográfico e
crítico que vai de Bouterwek a José Veríssimo, passando por
Ferdinand Denis e Sílvio Romero, para nada dizer de toda a
ensaística estabelecida desde os meados do século XIX.
Machado de Assis e Mário de Andrade
são dois autores cuja inclusão no cânone brasileiro ninguém por
certo poderá contestar. João Alexandre Barbosa identifica nas
"Memórias póstumas" "a afirmação de
uma maneira de ver a literatura que, em última instância, não apenas
negava a sua própria maneira anterior, mas fazia desta maneira a
alimentação para o verme que não somente roeu as ‘frias carnes’ do
‘autor defunto’, mas que, assim fazendo, deixou surgir o ‘defunto autor’." Quanto a saber se se trata
de "duas fases de um mesmo escritor" - do que ele
discorda - é matéria sujeita a debate, tanto mais que
o próprio Machado de Assis corroborava de bom
grado essa metamorfose. O poema "Uma criatura",
oportunamente lembrado por João Alexandre Barbosa
no contexto do delírio, é a demonstração por assim
dizer didática da ambigüidade machadiana.
O caso de Mário de Andrade é mais delicado,
porque, sem denegar-lhe o lugar permanente no
cânone brasileiro, envolve alguma revisão nas
perspectivas críticas. Herói da literatura, mas autor
de grandes obras falhadas (paradoxo que muitos se
recusam a aceitar), pode-se aplicar-lhe o que se
disse de Voltaire, isto é, que foi o segundo em todos
os gêneros. Em trabalhos certamente escritos ao
mesmo tempo - um e outro a propósito do centenário
- João Alexandre Barbosa e eu mesmo chegamos a
conclusões semelhantes, ele no capítulo "As
tensões de Mário de Andrade" e eu em artigo da
revista Ciência & Trópico (vol. 21, n.1, jan.-jun. 1993):
nas palavras de João Alexandre Barbosa, "a leitura
isolada de cada bloco (de suas obras) jamais
satisfaz porque o seu pleno entendimento só ocorre
pelo estabelecimento de relações com os demais."
Ele mesmo tinha consciência, não só dessa
fragmentação ("Eu sou trezentos, sou
trezentos-e-cincoenta"), mas também da
impossibilidade de reunificá-la na obra de arte
superior e única ("Mas um dia afinal eu toparei
comigo"). O manto de Arlequim, reproduzido na capa
original de "Paulicéia desvairada", é a metáfora da
multiplicidade caótica de São Paulo, mas também
dos losangos complementares e contraditórios do
seu espírito.
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