Wilson Martins
Prosa & Verso,
27.03.1999
Mortos ilustres
Clarice Lispector publicou o primeiro
livro em 1943 e silenciou até 1946, quando voltou com "O lustre" -
mas voltou mal, porque 1946 é o ano de "Sagarana" e do retumbante
artigo de Álvaro Lins. Assim se
iniciava um dos mais perturbadores desencontros de nossa literatura,
em que Guimarães Rosa aparecia como recessivo do regionalismo de
1930 - daí ter sido imediatamente reconhecido.
Clarice Lispector, por sua vez,
anunciava ou prenunciava o esteticismo que iria predominar nas
décadas seguintes e com o qual Guimarães Rosa jamais se identificou,
pois "Grande sertão" se inscreve na tradição localista de Afonso
Arinos, Simões Lopes Neto e Valdomiro Silveira, conforme observa
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos no
‘‘Dossiê 30 anos sem Guimarães Rosa’’ ("Revista USP, nº 36,
dez./jan./fev. 1997/1998).
Era também o que me parecia desde
1946, ao incluí-lo na família espiritual dos estilizadores
regionalistas, no bom e no mau sentido da palavra - e foi isso,
justamente, o que desnorteou a crítica, pois as chamadas vanguardas
só passaram a valorizá-lo com a leitura estetizante do "Grande
sertão", quando o regionalismo era encarado com desprezo, pela
imagem da literatura deliberadamente anti estilística dos anos 30,
cuja concepção de escrever bem era escrever mal. Nesse tempo, Jorge
Amado reivindicava escrever com o máximo de realidade e o mínimo de
literatura.
Sem desprezar ou ignorar a realidade,
Guimarães Rosa escrevia com o máximo de literatura - mas daí a
pensar que a sua obra tenha implantado o pináculo definitivo do
estilo literário vai uma distância que Francisco Costa, editor da
"Revista USP", transpõe alegremente: ‘‘não surgiu ninguém que o
substituísse à altura no terreno da prosa de ficção", juízo
subjetivo e arbitrário a ser aceito pelo que valer. Ele vai ainda
mais longe nos arroubos retóricos: Guimarães Rosa "deve fechar o
século - e o milênio (!) - como ‘o’ autor nacional por excelência,
espécie de ideal a ser atingido por todo aquele que se aventurar, e
se aventura, no terreno da prosa."
A idéia de um "estilo ideal" a ser
coletivamente seguido é contraditória nos seus próprios termos, na
medida mesmo em que o estilo é, por definição, individual,
inconfundível e intransferível. Os que
procuram repeti-lo não passam de imitadores desprovidos de
interesse.
O próprio Guimarães Rosa viu-se em
face desse dilema: ou se imitava a si mesmo (o que, aliás, já estava
acontecendo nos últimos livros), ou se renovava - deixando de ser
Guimarães Rosa.
Os grandes estilistas, precisamente
por sua absoluta originalidade, são incomparáveis e estéreis, não
tendo nem podendo ter descendência legítima. No que a ele se refere,
acentua Luís Fernando Veríssimo na mesma revista, os imitadores
tinham-lhe transformado o jeito de escrever "num rosário de
maneirismos", acrescentando: "Talvez a melhor coisa que tenha
acontecido com Guimarães Rosa nestes 30 anos seja a diminuição da
sua influência. Sua reputação aumentou na medida em que o tempo
destruiu uma sentença passada por críticos da
época, que Rosa inaugurava uma nova linguagem para o romance
brasileiro." Sua obra permaneceu "imponentemente única e estanque,
sem vizinhos ou vazamentos".
Se os críticos de Guimarães Rosa
sempre foram epifânicos e jaculatórios (como ocorre na "Revista
USP"), encarando como heresias dignas de fogueira qualquer
julgamento menos encomiástico, os de
Machado de Assis, sem excluir os que pretendem louvá-lo, sofrem da
carência incurável de não ter espírito machadiano, manifestando com
grande freqüência a frustração das expectativas de leitura: querem
uma biografia edificante, encontrando uma biografia excêntrica e
desmistificadora; esperam um romancista convencional, segundo as
regras conhecidas, e encontram um romancista irregular e
indisciplinado; preferindo afirmações sem ambigüidade,
surpreendem-se com as ambigüidades que são a maneira machadiana de
afirmar; querem técnicas provadas, encontrando-as inovadoras e
desafiantes; desejando narrativas retilíneas e lógicas,
enfrentam-nas labirínticas e contraditórias; na poesia, esperam
Castro Alves e encontram Machado de Assis, poeta "frio" e nada
hiperbólico; ansiando por um tribuno do povo, militante dos comícios
e reuniões de esquina, desiludem-se com o traidor da raça e
monarquista embuçado.
Quanto a este último aspecto, a
frustração é tão grande que Roberto Schwarz chega a censurá-lo por
não ter tido a percuciência do PT e não haver tirado a "conclusão
lógica" do sistema econômico do seu
tempo, que era a "transição do mundo da escravidão para o trabalho
livre", no que diferia da "grande novidade do PT (...) partido que
defende o direito à legalidade do mundo do trabalho." O que, aliás,
não é verdade, diga-se de passagem, no que se refere a Machado de
Assis (Antônio Carlos Secchin et al. "Machado de Assis. Uma
revisão". Rio: In-Folio, 1998).
Podemos consolar-nos com a leitura dos
seus contos, na antologia exemplarmente modelar de John Gledson (2
vols. São Paulo: Companhia das Letras, 1998). Não é exato,
entretanto, que "esses contos sempre foram, em relação aos seus
romances, relegados a um segundo plano."
Na verdade, a importância relativa de
uns e de outros, e até a "natureza" profunda do seu talento de
escritor, é um debate clássico em nossa literatura.
Para nada dizer das incontáveis
antologias e da inclusão nas obras completas, basta lembrar as
numerosas exumações de R. Magalhães Júnior (algumas delas
discutíveis) e a imensa bibliografia
crítica para verificar que os contos sempre estiveram no primeiro
plano de interesse.
O belo volume da In-Folio não é uma
"revisão", palavra que implica novas formulações críticas; será,
antes, uma releitura, mais rememorativa que renovadora.
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