Wilson Martins
Prosa & Verso,
05.06.1999
Homem de paixões
Temperamento sangüíneo e irônico -
condições contraditórias que a caracterologia convencional teria
alguma dificuldade em conciliar - Guilherme Figueiredo (1915-1997)
foi essencialmente um homem de paixões (A bala perdida. Memórias.
Rio: Topbooks, 1998). Apenas em parte respondia à figura psicológica
de l'homme moyen sensuel, e isso porque não era moyen em coisa
alguma. Sensuel, sim, e em proporções hiperbólicas, amante da boa
mesa, da poesia, do teatro, da música, do balé, em suma, das
atividades intelectuais que se definem, antes de mais nada, pela
sensibilidade e pela emoção, quero dizer, pelo exercício dos
sentidos. Era o modelo paradigmático do célebre postulado: nele,
nada existia na inteligência que não tivesse passado antes pelos
sentidos.
Na linguagem estereotipada e
simplificadora dos marxistas livrescos, era o pequeno-burguês,
encarado com muxoxos depreciativos, mas inscrevia-se, ao mesmo
tempo, no que, por convenção, costumamos chamar de "esquerda". No
caso brasileiro, esse vocabulário anda necessitando de higiênica
releitura decapante. "Esquerda" e "direita" comunicam-se entre si
por incessantes osmoses, mal percebidas pelos repetidores de
manuais. Nossa "esquerda" é muito mais direitista do que imaginamos,
assim como a "direita" vive na secreta nostalgia da "esquerda".
Outro "burguês" das simplificações vocabulares era Júlio Mesquita
Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo, que deu a um dos
filhos o nome de Luís Carlos, em homenagem ao legendário Cavaleiro
da Esperança, figura emblemática do espírito revolucionário nos anos
20, e a outro o de Ruy, preito ao não menos legendário Rui Barbosa,
encarnação do pensamento liberal e adversário nato das revoluções
armadas. Esse foi o mundo intelectual e jornalístico do chamado
"grupo do Estado", ao qual Guilherme Figueiredo pertenceu por laços
de família, ideário político e classe social.
Grupo que, no meu entender, viveu no
erro característico dessa geração, a impaciência de resolver os
problemas políticos por meio de revoltas armadas (eram revoltas, não
revoluções, se quisermos manter algum rigor terminológico). Esse
mesmo grupo de direitistas de esquerda, emblematicamente reunidos
nas erupções tenentistas, era também politicamente "civilista" sob a
bandeira de Rui Barbosa, no que, aliás, não percebiam nenhuma
contradição: era, segundo pensavam, a mesma causa. Usar o
militarismo em nome do civilismo é uma sinclinal que dura até aos
nossos dias, de forma que há evidente incongruência em combater o
militarismo em nome do "estado de direito", a menos que existam em
tudo isso as jesuíticas reservas mentais em que nos formamos desde o
século 16.
De qualquer maneira, Guilherme
Figueiredo era um direitista de esquerda ou esquerdista de direita,
como quisermos, identificando-se, por aí, com seus amigos
paradigmáticos, Paulo Duarte e Júlio Mesquita Filho, Mário de
Andrade e Carlos Lacerda, Ênio Silveira e Afonso Arinos, todos da
mesma família política. Com a revolta de 1932, comandada pelo pai de
Guilherme Figueiredo, os paulistas propuseram a demonstração
didática dessas contradições, opondo, no fundo, ao governo
tenentista de Getúlio Vargas a ideologia da República Velha, que
tinha sido, em sua real realidade, uma república paulista e
conservadora.
Por isso mesmo, denominada de
Revolução Constitucionalista, foi apenas a "revolução melancólica" a
que se referia Oswald de Andrade, desencadeada com a precipitação
dos velhos ódios recalcados e baseada na estratégia das ilusões: "O
povo espera, boquiaberto, como a receber uma chuva de manás Mas,
nestes dois dias de revolução vitoriosa só ouvíamos as esperanças. E
eu, mais que ninguém. Onde estava o general Klinger, que viria de
Mato Grosso com seis mil furiosos constitucionalistas? Onde o
general João Gomes Ribeiro? [] E os mineiros, os mineiros do
interventor Olegário Maciel? E os nordestinos, prontos a
confraternizar com os paulistas []?"
Não foi o último movimento castrense
da direita esquerdista contra a esquerda direitista: Jânio Quadros,
como direitista de esquerda, criou as condições políticas que
justificariam a "solução" em que os políticos civis se serviram dos
militares, e os militares dos civis, em mais uma das falsas manobras
que é a constante da nossa história. A revolta de 1932 ficou,
entretanto, como traumático episódio cívico e frustração não menor
na vida de Guilherme Figueiredo e na dos seus amigos paulistas
(sabe-se que a tendência separatista foi predominante em largos
setores da revolução - e continua em estado larvar).
Especularmente simétrica à guerra
paulista (como a chamam os mais exaltados) foi a campanha perdida de
Guilherme Figueiredo para a Academia Brasileira de Letras. Se era
impensável, em princípio, o seu interesse academizante, a rejeição,
ao contrário, teria sido perfeitamente previsível, saborosa história
contada no cap. "O turismo de Esopo" e num dos seus livros mais
característicos e divertidos (As Excelêncis ou como entrar para a
Academia, 1964). É conhecido o jogo clássico desses mal-entendidos,
em que Guilherme Figueiredo tinha razão em criticar a Academia e os
acadêmicos razões curiais para rejeitá-lo, comédia de erros que
repetia, entre outras, a que se havia representado, anos antes, com
Monteiro Lobato.
O mais intrigante, escrevi a propósito
das Excelências, é que, tudo bem considerado, ele podia ser visto
como escritor tipicamente acadêmico, amante do estilo pelo estilo,
homem de imaginação literária, grandes leituras e obra volumosa.
Poderia ter sido um acadêmico modelar.
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