Wilson Martins
12 de julho de 1999
Herói Tenebroso
Em crônica de 1973, incluída no volume
A descoberta do mundo (Rio: Rocco, 1999), Clarice Lispector refere
uma das suas "muitas conversas" com Carlinhos Oliveira, de quem se
dizia amiga "há muitos anos", tendo resistido, segundo parece, ao
fascínio do grande sedutor, célebre por suas conquistas tão
fulminantes quanto sucessivas, se não simultâneas. Pródigo nos
grosseiros palavrões que constituiam o seu vocabulário de base, o
diálogo encaminhou-se, por inesperado, a transcendentes questões
metafísicas: "Quem é você, Carlinhos? E, por Deus, quem sou eu?"
Claro, as inquietações de Clarice
Lispector com o mistério existencial e com as palavras, eram algo
diferentes das do herói tenebroso: "Carlinhos, nós dois escrevemos e
não escolhemos propriamente esta função. Mas já que ela nos caiu nos
braços, tenho remorso porque cada palavra nossa devia ser por assim
dizer pão de se comer." Isso é absurdo, replicava ele, como seria de
esperar, porque, enquanto ela se preocupava com a palavra justa, as
dele eram com a palavra obscena, aliás espontâneas em sua linguagem:
"eu digo [palavrão] e ninguém publica. Estamos condenados a guardar
uma língua que é apenas uma coleção de palavras."
O dicionário escatológico de Carlinhos
Oliveira datava da Idade Média, sem que ele provavelmente o
soubesse, porque nada foi inventado desde então em matéria de
"língua verde", mas não é o que importa. O desconcerto entre os dois
era mais profundo e substancial: "Nós não nos entendemos", dizia
ela; "escrever não é sucesso [] falo de se querer cortar a vida em
dois e ver o sangue correr. Nós dois, Carlinhos, nós gostamos um do
outro, mas falamos palavras diversas." E ele, com a amargura
ressentida que lhe caracterizava as atitudes (inclusive de
escritor): "Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu
renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer
amor [deve ter usado outra palavra] Tudo nos humilha. Ninguém
acredita em nós. Tudo está certo para eles, mas não nos pedem senão
idiotices." Com o que insultava, sem perceber, a delicada Clarice.
Esse era o "personagem trágico", como
o qualifica Carlos Heitor Cony no prefácio ao livro de Jason Tércio
(Órfão da tempestade - A vida de Carlinhos Oliveira e da sua geração
entre o terror e o êxtase. Objetiva, 1999). Ele pertencia a uma
"linhagem especial de intelectuais do Rio de Janeiro", observa o
biógrafo, os que, em épocas diversas, recionalizam a esterilidade
criadora sob as espécies de rebeldia social e desafio às convenções
aceitas, representantes da vida literária mais que da literatura,
sediados nos bares e restaurantes da moda, identificados com a
liberdade de costumes e o espírito tribal -que os compensa, pela
fuga alcoólica, das frustrações intelectuais e artísticas.
Figura trágica, sem dúvida, como quase
todos eles, mas estava longe de ser "o escritor mais autêntico de
nosso tempo", como quer Carlos Heitor Cony num impulso de generoso
entusiasmo (mas discutível objetividade crítica). Havia no seu
comportamento uma boa parte de atitude cultivada, na proporção mesmo
em que lhe percebia aceitação. Ele encarnou, deliberada e
conscientemente, o protótipo de "gênio e desordem" que identificava
o herói romântico. Fez da sua ficção uma repetitiva autobiografia, e
da biografia real uma obra de ficção.
Nesse particular, seu livro
representativo, que engloba e rescinde todos os outros, é Um novo
animal na floresta (1981), em que, desde o título, acentua a própria
singularidade: modelo de fascinante fora da lei e das leis, imerso
no álcool e nas fronteiras da loucura, boêmio modelar, irresistível
amante de todas as mulheres (aliás promíscuas), inclusive estrelas
de renome internacional, que lhe atravessam os dias e as "noites
intermináveis" (expressão repetida 13 vezes em 167 páginas),
misterioso paladino de não se sabe que virtudes redimidoras.
O gráfico de sua existência,
acompanhado por Jason Tércio numa biografia exemplar, é curiosamente
invertido, marcando a decadência no mesmo ritmo em que parecia
vitoriosa e segura. Já a havia começado quando foi admitido no
Diário Carioca (cap. intitulado "Um passo à frente"), "arrastando-se
numa crise financeira da qual jamais se recuperou." Não era apenas
de ordem financeira: ele passou a vida projetando e anunciando as
grandes obras-primas que se dizia capaz de realizar, mas só as
escreveu na última fase, e não foram obras-primas: seus livros
apareceram entre 1963 e 1986, ano do seu falecimento.
Jason Tércio, assinalando os dias da
semana e os meses, é mais descuidado no que se refere aos anos,
tornando a leitura irritante. Se informa que Carlinhos Oliveira
nasceu a 18 de agosto de 1934, ficamos sem saber a data da morte,
salvo que ocorreu pelas "2 horas da tarde". Participando
"intensamente da vida noturna carioca", ele foi uma das suas
personalidades paradigmáticas nas décadas de 60 e 70. Amigo íntimo
de marginais e desordeiros, cortejado pelos pilares mais
respeitáveis da sociedade e por importantes órgãos do jornalismo, e
também eterna promessa do grande romancista que poderia ter sido,
transformou em mito um cotidiano afinal de contas lamentável.
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