Wilson Martins
23 de agosto de 1999
De imitação em imitação
"décio disse: ferreira gullar está certo, mas pelo avesso errado,
a gente só via o 'avesso errado', q tal ver o 'está certo'? veja q
ninguém execra nem repudia gullar, seu carreirismo, seu oportunismo
na luta pelo poder, seu puxaquismo vergonhoso com o q a classe médua
universitária de esquerda entende por poesia (...)" Leminski
Para além do interesse propriamente
biográfico que possam ter, as cartas de Paulo Leminski (1944-1989)
são um documento da vida literária, em particular no que ele mesmo
denominava as "intrigas palacianas pelo poder" (Paulo Leminski/Régis
Bonvicino. Envie meu dicionário. Cartas e alguma crítica. São Paulo:
Editora 34, 1999).
É nisso, de fato, que se resumem as
motivações, os pressupostos e os objetivos das vanguardas literárias
e artísticas, cujo paradoxo, segundo creio, bem merece algumas
reflexões: longe de serem movimentos abertos e prospectivos, e ao
contrário do que sustentam em proclamações e manifestos, são
empresas fechadas nos seus próprios limites e limitações,
paralisadas no que a doutrina sugere de abertura. Pertencem à
história das instituições, não à história da criação artística, pois
não admitem herdeiros e infratores, menos ainda voluntários ou
involuntários desvios da norma. Cristalizam-se na imobilidade do que
prescrevem. Fundam-se em anátemas e exclusões em nome da liberdade e
da invenção; não aceitem rivais, mas apenas discípulos,
ciumentamente excludentes de qualquer ameaça ao seu império. À
exceção dos fundadores, todos os demais fiéis situam-se na periferia
imitativa, na reverência respeitosa. Suas obras só têm sentido no
interior delas mesmas e começam a esgotar-se e perder o atrativo da
novidade no momento em que aparecem.
Paulo Leminski pertenceu à vanguarda
concretista, uma das mais ruidosas e intolerantes de nossa vida
intelectual, ao lado da modernista, igualmente intolerante e
ruidosa. Mas, enquanto o Modernismo "desdobrou-se" em três décadas,
renovando a poesia nos anos 20, o romance nos anos 30 e os estudos
brasileiros nos anos 40, o concretismo cristalizou-se nos próprios
manifestos e mal terá durado cinco anos, entre as proclamações do
grupo Noigrandes e o atestado de óbito que Haroldo de Campos lhe
passou em 1960.
Seus criadores tinham consciência
obscura da própria efemeridade, procurando afirmar-se e reafirmar-se
por meio de sucessivos manifestos e manifestações, para nada dizer
das excomunhões periódicas. Ferreira Gullar foi o primeiro herético
sacrificado em fogueira simbólica, merecendo este escólio de Paulo
Leminski: décio disse: ferreira gullar está certo, mas pelo avesso
errado, a gente só via o 'avesso errado', q tal ver o 'está certo'?
veja q ninguém execra nem repudia gullar, seu carreirismo, seu
oportunismo na luta pelo poder, seu puxaquismo vergonhoso com o q a
classe médua universitária de esquerda entende por poesia (...)
Sem excluir a existência eventual de
documentos mais antigos, Leminski manifestou desde 1977 a sua
impaciência contra a ditadura da trindade canônica: "Passei muitos
anos de olhos voltados para S. Paulo / para o grupo Noigrandres /
para Augusto, principalmente / escrevendo para eles / preocupado em
saber O QUE ELES IAM ACHAR." Começou a chamá-los de "patriarcas" -
patriarcas esses que, segundo parece, não revelaram entusiasmo
excessivo pelo Catatau "seu trabalho mais bem realizado" (Carlos
Ávila dixit). A reação dos patriarcas "foi curiosa", escreve
Leminski: não sei dizer se eles gostaram ou não / enfim, o que é
gostar? / tenho certeza q para o paladar weberiano-joão gilbertinho
/ de Augusto / o Catatau deve ter parecido bagunçado demais /
irregular demais / entrópico demais / Augusto nunca foi muito claro
comigo acerca do q ele achou do Catatau produto final )...) décio se
refere ao Catatau falando em 'monolito', 'é uma boa', coisas assim /
haroldo, de haroldo nunca ouvi nem uma palavra.
A acolhida negativa da trindade
canônica provocou, como é natural, despeitada frustração em
Leminski, se é verdade, por outro lado, que coloca em boa companhia
os que acreditam nas insuficiências do romancista em face de suas
ambições renovadoras. É história a ser acompanhada mais de perto. Se
Finnegans wake desencadeou o delírio imitativo no Haroldo de Campos
de Galáxias (parcialmente publicado desde 1964), o Leminski de
Catatau (1975) e o Glauber Rocha de Riverão Sussuarana (1977) não
resistiram ao tropismo simultâneo de Joyce, Haroldo de Campos e
Guimarães Rosa.É uma cadeia de emulações frustradas ou bem sucedidas
(dependendo do ponto de vista)
Por definição e natureza, as
vanguardas estão destinadas a desaparecer no meio de ruído e furor,
na medida mesmo em que se recusam às adulterações de programa. Paulo
Leminski, vanguardista típico, estava condenado à periferia, como
reconhecia num poema conhecido: "um dia a gente ia ser homero / a
obra nada menos do que uma ilíada / depois / a barra pesando / dava
pra ser aí um rimbaud / um ungaretti um fernando pessoa qualquer /
um lorca um eluard um gingsberg / por fim / acabamos o pequeno poeta
de província / que sempre fomos / por trás de tantas máscaras
(...)."
O que ficou foi o personagem da vida
literária, ainda hoje celebrado em cerimônias propiciatórias, missas
solenes na Catedral Basílica de Curitiba e repetidos rituais de
exorcismo.
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