Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 04.09.1999



O que o inglês vê



 

 

Organizando um manual de estudos brasileiros, Robert M. Levine e John J. Crocitti propuseram-se a identificar a "singularidade do Brasil", reunindo "uma variedade de perspectivas, dos visitantes estrangeiros aos analistas nativos e ao homem comum". A idéia era compilar capítulos autônomos, permitindo ao leitor abrir o volume em qualquer lugar e apreciar o que encontrasse.

É um vade-mécum e como tal deve ser consultado, mais para informação do que para conhecimento: afinal, estamos na era da Internet, de onde veio uma parte do material. A beleza de surfar pela Internet, dizem os autores, "é permitir o contacto com diversos grupos que podem apresentar o seu caso sem sanções oficiais, nem depender de um grande orçamento". ("The Brazil reader. History, culture, politics". Durham, NC: Duke University Press, 1999).

O resultado é um caleidoscópio, como o classificam, mas caleidoscópio com implícitas intenções desmistificadoras: tratava-se de confrontar o que no Brasil existe apenas prá inglês ver, com o que o inglês realmente vê - imagens nem sempre coincidentes, porque há necessariamente em todo caleidoscópio uma parte de verdade e outra de ilusão.

Os capítulos "cobrem o espectro da ideologia e pontos de vista, registrando as vozes emocionais dos negros revoltados contra o tratamento que recebem e dos estudantes em revolta contra a brutalidade policial. Aqui se encontram cartas, relatórios oficiais, regulamentos, reminiscências, fotografias, ficção, leis, listas, obras de arte, análises de canções e entrevistas com pessoas cujas vidas, para o bem ou para o mal, foram afetadas pelas condições sociais e pelo Governo. É mais do que amostras do que escreveram os políticos brasileiros e os intelectuais".

É o Brasil visto por western eyes, se quisermos lembrar o romance de Joseph Conrad em que um inglês relata a história do revolucionário Razumov. Também no manual Levine/Crocitti a ficção é apresentada por Elizabeth Ginway como testemunho da vida política: "A repressão dos militares serviu para aguçar o virtuosismo e a sofisticação dos escritores brasileiros, que passaram a produzir romances políticos experimentais, ficção distópica e romances documentários e testemunhais, todos denunciando o regime".

O aprimoramento estilístico como processo e resultado da resistência à censura é fenômeno de que o velho Sainte-Beuve já se felicitava, com sorridente maquiavelismo, no século XIX. É fenômeno universal e quase rotineiro, chegando, mesmo, à imitação pura e simples, como na similaridade que ela aponta entre "Fazenda modelo", de Chico Buarque, e "Animal farm", de George Orwell.

Seria também de esperar que alguns enganos factuais e "singularidades" brasileiras escapassem aos "western eyes". Assim, a palavra "gaúcho", dizem eles, "é usada vagamente para designar os sulistas em geral"; segundo o que pensam, o Brasil foi descoberto por acaso; afirmam que, na monarquia, os senadores eram nomeados pelo imperador, mas deixam de referir o essencial: eram políticos regularmente eleitos, submetidos em lista sêxtupla à consideração do monarca. Claro, o vale do Paraíba não pode ser indicado simplesmente como Paraíba, nem a unidade monetária era o réis, mas o mil-réis, de forma que um escravo não era vendido por 25 réis, nem um índio por nove.

No capítulo sobre a escravidão, a princesa Isabel é designada como imperatriz e, na foto de um escravo, indica-se que a máscara destinava-se a impedi-lo de comer - tratava-se de impedir que comesse terra, enfermidade conhecida.

Diz-se que a revolução de 1930 foi apoiada pelos militares, quando, na verdade, a junta provisória tentou tomar conta do Governo do Rio de Janeiro, para impedir a posse de Getúlio Vargas. Afirma-se em um mesmo capítulo que este último não percebeu os problemas sociais que exigiam solução, e também que a sua legislação social beneficiou a classe média e o proletariado.

Como é freqüente nos western eyes que nos observam, cada referência positiva é sempre acompanhada da restrição que a invalida, ou de projeções ominosas do que está por vir. Assim, as leis getulianas só favoreceram a classe média pela "criação de um vasto número de empregos burocráticos"; os operários só eram beneficiados quando tinham trabalho regular; equivalendo a US$ 131 de 1998, o salário mínimo da época era uma "importância generosa", mas os trabalhadores continuavam a rejeitar os sindicatos oficialmente reconhecidos. Esses são apenas alguns exemplos.

Tudo isso torna difícil de explicar a popularidade do presidente "entre os brasileiros em geral", conforme os autores reconhecem. O caleidoscópio mostra, às vezes, imagens desfocadas, como a fazenda de café no Rio Grande do Sul, numa foto, enquanto em outra aparecem duas freiras, o que, segundo esclarecem, "é muito raro no Brasil do século XX."

Há, contudo, um capítulo que nos deve encher de vergonha, sobre o imperialismo cultural norte-americano no país. Foi escrito pelo insuspeito Roger M. Allen, antigo funcionário diplomático em Brasília
 

 

 

 

 

 

23/09/2005