Wilson Martins
Prosa & Verso,
03.10.1999
Anos tumultuosos
Nascido em 1915 na alta burguesia
paulista, Goffredo Telles Júnior conheceu duas épocas completamente
diversas da vida brasileira, separadas pelo divisor de águas da
revolução de 1930. Digam o que disserem os puristas do vocabulário
ideológico, foi uma revolução, cujo alcance, por paradoxo, as
gerações posteriores seriam incapazes de avaliar, pela simples
circunstância de haverem surgido no universo mental por ela
instituído.
Basta dizer, para nos atermos somente
aos fatos concretos mais evidentes, que foi uma revolução
esquerdista (apesar das aparências), dirigida contra a república
direitista então vigorante, assim como a quartelada de 1889 foi uma
revolução esquerdista contra o direitismo das instituições
monárquicas. Aceito aqui as simplificações doutrinárias que vêem na
esquerda o partido do movimento e na direita o partido do
imobilismo, mas é preciso entender o que isso significa: não há nada
mais direitista que a esquerda no poder. Na oposição, a direita é
sempre de esquerda.
Assim, os brasileiros nascidos em 1930
não eram apenas quinze anos mais moços que os de 1915: eram homens
de outras estruturas mentais, diferentes concepções do mundo e
pensamento prospectivo, outros condicionamentos ideológicos, outras
coordenadas existenciais. Goffredo Telles Júnior (A folha dobrada.
Lembranças de um estudante. Rio: Nova Fronteira, 1999) tem clara
consciência dessas falhas tectônicas na geologia social: "A década
dos anos 20 foi marcada pelo desmoronamento dos pilares econômicos e
políticos da Velha República. A Revolução de 1930 se verificou num
ambiente de efervescência social, com o desmantelamento da vetusta
oligarquia burguesa, e o advento, no Governo do País, de uma nova
gente, com um novo espírito."
Nessa conjuntura, um projeto de
atualização histórica (semelhante ao de 1889) determinou o
tenentismo na política e o modernismo na literatura e nas artes -
que foi, também, um "tenentismo", quero dizer, uma operação de
"cadetes" por oposição aos estados-maiores. A política era dominada
pelos partidos republicanos estaduais, significativamente alcunhados
de "carcomidos", de repente desafiados por uma "idéia nova" - o
Partido Comunista, que seria, por meio século, o grande catalisador
de nossa vida política. De "Nova" foi igualmente denominada a
república que surgia: não é sem razão que o presidente Vargas viu no
modernismo o tenentismo da literatura, assim como, pouco a pouco, o
modernismo ia se identificar com o getulismo político. Luís Carlos
Prestes tinha sido a encarnação paradigmática do tenentismo, mas a
revolução resultante não tardaria em substituir insidiosamente o
prestismo pelo getulismo, com o que o Cavalheiro da Esperança iria
pagar para sempre o erro irreparável que cometeu ao recusar o
comando da Revolução, alegando tratar-se de movimento burguês. Em
1933, o getulismo fechou o Clube 3 de Outubro, último avatar do
tenentismo, infletindo para a direita uma revolução que havia
começado pela esquerda.
Nesse tempo, escreve Goffredo Telles
Júnior, homem de 1915, os troncos da tradição brasileira haviam
perdido terreno, ante o avanço dos socialismos. [] Nossas velhas
famílias haviam perdido importância e prestígio. Davam a Impressão
de que haviam chegado ao fim da linha. [] Uma civilização populista
se instalava.
"Populismo", "trabalhismo",
"comunismo", são as novas palavras do cotidiano: "Depois de 1930,
durante todo o reinado de Getúlio, a principal luta política já não
era mais a luta dois puros contra os carcomidos. Agora, a luta se
abrira entre o trabalhismo renovador e os renitentes representantes
das estruturas tradicionais."
O embate ideológico dos anos 30 foi
triangular, opondo o comunismo ao integralismo e ao getulismo,
enquanto este último tratava de sobrepor-se aos dois. Iludido pelo
anticomunismo getuliano (que era predominante na opinião pública), o
Integralismo imaginou poder aliar-se ao presidente, com os
resultados que se conhecem. Nesse quadro, o partido de Plínio
Salgado originava-se nas mesmas raízes nacionalistas que conformavam
os outros dois: "nascido logo após a Revolução de 1930, era,
precisamente, aquela terceira posição, aquela procurada linha de
centro, contrária ao totalitarismo do Estado e contrária ao
liberalismo da burguesia."
Goffredo Telles Júnior tinha 19 anos
quando ingressou na Ação Integralista Brasileira, idade das grandes
opções idealistas que levaram a juventude a se identificar com o
tenentismo nos anos 20 e com o comunismo na década seguinte. Em
1937, todos os partidos foram fechados com a decretação do Estado
Novo:
Durante os efêmeros cinco anois de
atuação da Ação Integralista como partido, sempre pensei que minhas
idéias antitotalitárias - antifascistas, antinazistas e
antimarxistas - fossem, estritamente, as idéias fundamentais do
Integralismo. Para mim, assim como para todos os meus companheiros
de estudos e de lutas, o Estado Integral era, precisamente, o Estado
que se opunha ao Estado Totalitário, tanto de direitia, como de
esquerda.
Contaminados pelo maniqueísmo
ideológico, muitos historiadores compreendem tão pouco o clima
intelectual dos anos 30, quanto os de 1930 compreendiam o de 1915.
Goffredo Telles Júnior declara pertencer agora à grande família
espiritual da esquerda - mas com qualificações: a esquerda
democrática, cuja doutrina diz encontrar nas encíclicas do papa João
XXIII.
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