Wilson Martins
Prosa & Verso,
27.11.1999
Rodolfo Teófilo
É possível ser um exemplar humano da
mais alta qualidade, como Rodolfo Teófilo (1862-1932), e, ao mesmo
tempo, mau escritor e péssimo romancista. É possível escrever a seu
respeito, como Lira Neto, uma excelente biografia, infestada de
solecismos gramaticais e sintáxicos (O poder e a peste: a vida de
Rodolfo Teófilo. Fortaleza: Fundação Demôcrito Rocha, 1999).
Cabe louvá-lo, entretanto, por
empregar no masculino a palavra "cólera" para designar a enfermidade
cujo nome completo é cholera-morbus - morbus, morbo, sendo, em latim
e português, do gênero masculino. Ao contrário do que acreditam
muitos jornalistas da imprensa falada e escrita, essa acepção
distingüe-se do feminino "cólera" - "impulso violento contra o que
nos ofende [] raiva, fúria, furor, zanga". Apesar do que preceitua o
popular Aurélio, cólera-morbo não é palavra dos dois gêneros.
Não seria Rodolfo Teófilo que
cometesse tal impropriedade, nem as que, infelizmente, se reproduzem
neste livro, prova de que a corrupção do português está mais
avançada do que percebemos, tendo passado da fala vulgar para a
língua escrita. Não se trata de "corrigir" o texto de Lira Neto, mas
de registrar um fenômeno que nada tem a ver com a "evolução" do
idioma. Estamos perdendo rapidamente a consciência das regências
verbais, a exemplo do que escreve Lira Neto: "Rodolfo ficou sabendo
o que lhe esperava"; ou, referindo-se aos seus adversários: "podiam
chamar-lhe de fóssil humano"; ou, ainda: "as crises de dispepsia lhe
roendo por dentro."
São igualmente numerosos os erros de
vocabulário: "peitava", por "atacar" a monarquia; "baldeamento" de
raças por mestiçamento; uma firma situava-se "há alguns poucos
metros" de outra; talvez o patrão "não fosse um mal sujeito";
tripulantes expulsos de um navio foram "deserdados"; "ninguém deu
por conta disso", isto é, ninguém se deu conta de; "caiu no gosto do
povo", solecismo generalizado, por "caiu no goto"; "achaques", para
indicar ataques de desafetos; Jenner "descobriu" a vacina contra a
varíola; a situação de Fortaleza parecia "sobre controle"; tal
político "conspirava junto com Pinheiro Machado", quando conspirava
"junto a" [].
A crítica não foi indulgente com
relação a Rodolfo Teófilo. Com o aparecimento do romance A fome, em
1890, Adolfo Caminha; ou o mote que seria glosado pelos críticos
posteriores; ele podia "ter todas as qualidades de um bom cidadão,
mas em tempo algum conseguirá um lugar proeminente na literatura
nacional". Tornou-se rotina. Sobre Os Brilhantes: livro "de leitura
difícil e desprezível, não só porque carece das qualidades de uma
obra de arte, como pela multiplicidade enfadonha de fatos e cenas,
cuja repetição sem interesse real para o estudo do tipo nos podia
ser poupada." Ou, sobre O paroara: "romance de linguagem incorreta,
pobre, descolorida, pouco artística" (José Veríssimo,. Sobre Maria
Rita: "descuido de linguagem, despreocupação com o estilo e muita
inverossimilhança na observação e análise" (Rodrigues de Carvalho).
Nas palavras de Lira Neto, "durante a
vida inteira, Rodolfo colecionara desaforos. Cansara de ser alvo de
críticas negativas a cada livro publicado. [] Apontavam-lhe sempre o
estilo frouxo, o pouco cuidado com a gramática, o descuido na
carpintaria do texto", daí resultando o volume em que reuniu as suas
retorsões, no estilo insultuoso da época (Os meus zolos, 19824).
Lira Neto lembra que ele foi
contemporâneo de "uma das mais brilhantes gerações de intelectuais
cearenses, como Capistrano de Abreu, Domingos Olímpio, Paula Ney e
Rocha Lima, além de se contar entre os fundadores da legendária
Padaria Espiritual, da qual Adolfo Caminha também fazia parte,
encontro explosivo aproveitado por Rodolfo Teófilo para o previsível
ajuste de contas: "Na edição de 1.º de julho de 1895, o n.º 19 de O
Pão trazia o primeiro da série de cinco artigos, assinados por
Rodolfo, que tentava demolir o romance de Caminha []."
Ele esteve "na linha de frente de
todos os episódios que Fortaleza viveu na passagem do século XIX
para o século XX: as epidemias de cólera, varíola e febre amarela,
as grandes secas, o movimento abolicionista, a luta contra a
oligarquia Accioly e a revolta popular que a depôs, a sedição do
Juazeiro do Padre Cícero. [] Charlatão e literato de província para
alguns, gênio e benemérito para outros, o nome de Rodolfo sempre
esteve marcado pela polêmica."
A mais dramática de todas, na campanha
de vacinação antivariólica, foi a guerra suja que lhe moveram a
ignorância popular e a politicalha provinciana que a explorava.
Nesse momento supremo de sua vida ele ofereceu o exemplo de nobreza
moral que dignifica a condição humana. Compreende-se que, diante do
espetáculo de baixeza que a realidade lhe proporcionava, haja
buscado refúgio na utopia compensatória que é o seu romance de 1922.
De fato, O reino de Kiato é muito menos excêntrico no conjunto de
sua obra do que pareceria à primeria vista. É uma ficção
moralizante, nas linhas de força do seu caráter e idealismo
científico: as estátuas da cidade homenageavam cientistas como
Pasteur e Jenner; não havia forças armadas; todos os serviços
públicos estavam automatizados; álcool e tabaco tinham sido sido
abolidos É uma fábula de preceito e exemplo que, nem os seus
contemporâneos, nem os nossos, souberam aproveitar.
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