Wilson Martins
27 de dezembro de 1999
Caracteres
Assim como chamado "olho clínico"
distingue o grande médico dos que apenas praticam a rotina dos
consultórios, o "olho crítico" separa o grande analista literário
dos que simplesmente escrevem sobre livros e autores. Mas, os outros
são necessários e até indispensáveis: não se trata de menosprezar a
rotina em face do espírito criador, porque a rotina mantém a
medicina e a crítica, enquanto as inteligências excepcionais as
fazem avançar, permitindo salvar o doente em certos casos e
reconhecer a grandeza onde exista.
Possuindo olho crítico inconfundível,
José Castello reuniu no que denomina de "libro híbrido" um conjunto
de excelentes estudos que, aliás, de híbrido nada têm, ficando longe
do "meio caminho", como afirma, "entre o jornalismo, o ensaio, a
crítica literária e a ficção". Eu diria que a ficção entra nessas
páginas como imaginação criadora, sem a qual tampouco haverá
crítica, ou jornalismo de alta qualidade, menos ainda ensaio digno
desse nome, nem medicina propriamente científica.
Os escritores aqui estudados em
páginas magistrais serviriam para exemplificar didaticamente as
conhecidas observações de Jean-Paul Sartre segundo as quais cada um
de nós e, em particular, os profissionais, "representam" como num
palco o papel específico atribuído às suas atividades. Nessas
perspectivas, Clarice Lispector representou perante José Castello,
como representava na vida literária, o papel de escritora célebre,
cujas excentricidades de comportamento eram garantia de genialidade.
Sua característica era a figura de suprema solitária, recusando-se,
por exemplo, a receber jornalistas, com o propósito deliberado de
afinal recebê-los, depois da presumível insistência.
Nesses encontros, ela propunha
repentinamente e sem qualquer motivo aparente algumas perguntas de
efeito e reflexões metafísicas. Episódio típico foi a "cena" do
gravador, representada para José Castello, no meio de gestos
dramáticos (é o caso de dizé-lo) e exclamações incoerentes: "assim
que vê o gravador, Clarice começa a gritar. 'Ah, ah, ah!'. Emite
vagidos longos, lamentos despidos de sentido []. Clarice se levanta
e, andando pela sala, querendo fugir mas sem poder encontrar a
saída, aumenta o tom de seu lamento []."
Note-se que, em termos existenciais,
essas "representações" são sinceras, respondendo às camadas mais
autênticas do personagem: a teatralidade corresponde à sua natureza
orgânicas do personagem: a teatralidade corresponde à sua natureza
orgânica. Outro "papel" é o do escritor maldito e marginal,
categorias limítrofes e até intercomunicantes: João Antônio, Dalton
Trevisan, Ana Cristina César "Poeta maldita", diz José Castello
desta última, que construiu e alimentou o próprio mito de mulher
fatal, "jogando com ele todo tempo": "foi mais uma grande personagem
que uma grande poeta {} ter se tornado uma grande personagem
provavelmente a impediu de vir a ser uma grande escritora.
"Grande personagem" é também Hilda
Hilst, como aparece nos Cadernos de literatura brasileira (n.º 8,
outubro de 1999) representando o papel de Hilda Hilst. Em "papel"
diferente, Dalton Trevisan cultiva a parte do escritor misterioso
(como Raduan Nassar), fugindo da publicidade ao mesmo tempo em que a
provoca, odiando os jornalistas e negando-se a fotografias e
entrevistas. Nenhum dos dois vive num reconhecimento trapista: é
facílimo encontrar Dalton Trevisan nas ruas de Curitiba, de forma
que a lenda de sua reclusão foi inventada e construída por
repórteres imaginosos, que também inventaram o personagem do
vampiro. Na origem, trata-se de um conto em que ele satirizava os
vespertinos sensacionalistas, com "sangue na primeira página",
erradamente lido como auto-retrato em que o escritor, aliás, se
compraz: "Mais que uma estratégia de sobrevivência pessoal, de
resistência contra a modernidade [] o vampirismo é [] uma estratégia
literária."
Todo escritor maldito e marginal -
marginal por ser maldito e maldito por ser marginal - "desafia" a
sociedade bem comportada e o código de valores aceitos. É a imagem
de Hilda Hilst, cuja provocação pornográfica perdeu muito do seu
impacto na atmosfera permissiva e vulgar que é hoje a rotina do
jornalismo e da literatura. Nesse bloco, Raduan Nassar criou o
personagem do escritor que nega sê-lo e que os críticos, ou, pelo
menos, uma parte da crítica, mordendo a isca, se obstinam em
transformá-lo. José Castello considera-o grande escritor, mas
exagera ao afirmar que ninguém duvida disso. De qualquer maneira,
seu papel é o do escritor que pretende recusar-se à representação
que dele se espera - para representar outro: tendo desistido de
escrever, "não se cansa de explicar por quê desistiu de escrever." É
o papel da hipocrisia contestatória ou da contestação hipócrita, a
famosa "pescaria de elogios".
Alimentando com estremoso cuidado a
figura do escritor genial que lhe atribuem, Manoel de Barros
representa o papel do primitivo espontâneo, bom selvagem da
literatura, imagem que se deve em partes iguais aos críticos e aos
leitores cansados de artifícios, suspirando pelo ar fresco da
floresta. É a literatura ecológica. Sua poesia é feita de aforismos
populares e frases de efeito, assim como esse primitivo é homem de
costumes refinados, conforme as notações ao mesmo tempo maliciosas e
benevolentes de José Castello.
Se o mundo todo é um palco, como
queria Shakespeare, os escritores estarão, com certeza, entre os
atores mais espontâneos.
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