Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 08.07.2000



Dois jornalistas




 

Tanto Rubem Braga ("Livro de versos", 2ª ed. Rio: Record, 1997) quanto Odylo Costa, filho ("Livro de poemas de 1935". Rio: Henrique Carstens, 1937) foram catalogados por Manuel Bandeira entre os poetas bissextos, mas, se a classificação parece justa com relação ao primeiro (que bissexto continuou pelos tempos afora desde os poemas incluídos num volume de crônicas - "O Morro do Livramento". São Paulo: Brasiliense, 1944), a questão é mais complexa no que se refere a Odylo Costa, filho.

Com "Tempo de Lisboa e outros poemas", publicado em 1965, rompendo um silêncio, dele mesmo e da crítica, que durou cerca de três décadas, Odylo Costa, filho passou de poeta bissexto a contumaz. No intervalo, foi completamente esquecido, tanto como poeta quanto como ficcionista (atividade em que, de fato, não se destacou nem persistiu). Ainda hoje é pouco lido, observa Cecília Costa na afetuosa biografia com que o repõe nas correntes vivas da literatura ("Odylo Costa, filho: um homem com uma casa no coração", Rio: Relume-Dumaré, 2000).

Foi longo, como ficou dito, o período de purgatório. Otto Maria Carpeaux ignorou-o, não só na primeira edição da "Bibliografia crítica", mas também na terceira, "revista e aumentada" (1964), silêncio mantido pelo "Pequeno dicionário da literatura brasileira", cuja quinta edição, em 1998, aos cuidados de Massaud Moisés, apresentou-se como "atualizada". Se Raimundo de Menezes não o omitiu no conhecido "Dicionário literário brasileiro", é certo que o qualifica de "jornalista por vocação", sem qualquer referência à obra poética - no que, aliás, repetia literalmente o que consta de "Quem é quem nas artes e nas letras do Brasil", publicado em 1966 pelo Ministério das Relações Exteriores.

Mas, depois de "Tempo de Lisboa", escreve Cecília Costa, "Odylo não mais pararia de publicar versos, que jorrariam dentro dele como se tivesse em sua alma uma fonte inesgotável de doçura e beleza. (...) Seus filhos viriam a editar postumamente os livros que deixara preparados, como foi o caso dos contos das ‘Histórias da beira do rio’, nas quais retomava a vertente ficcional de ‘A faca e o rio’, e dos livros de poemas ‘Anjos da terra’ e ‘Boca da noite’ (este, entregara pessoalmente à editora antes de falecer)". Na retórica da oração com que o recebeu em 1970 na Academia Brasileira de Letras, Peregrino Júnior situava-o "entre os melhores e os mais autênticos poetas da língua portuguesa de todos os tempos", palavras, claro está, que se devem atribuir à atmosfera celebratória do momento.

Entre parênteses, é preciso dizer que o Odylo Costa, filho escreveu um modelar discurso de posse, gênero que se compõe em partes iguais de autobiografia, história literária da cadeira e nobreza de expressão. Jornalista por vocação e profissão, daí resultou em grande parte o extraordinário prestígio de que gozou, nomeadamente na atividade "de tarimba" e reformas em órgãos de imprensa, mas ainda, e sobretudo, por ter sido jornalista político e até ativista da vida partidária, militando na direita udenista, enquanto Rubem Braga dizia pertencer à esquerda melancólica por oposição à esquerda festiva da Zona Sul. Acrescentou, entretanto, ao jornalismo propriamente dito o jornalismo literário das crônicas em que se tornou reconhecidamente mestre e ponto obrigatório de referência.

Nas palavras de Manuel Bandeira, "o sentido poético, sempre presente em suas crônicas, é precisamente o que dá à sua prosa um tão raro e singular encanto". É o que se verifica nos textos selecionados por Domício Proença Filho, em que o "sentido poético" reaparece na nostalgia desesperada que envolve o que escreveu ("Aventuras, Rio": Record, 2000). O cronista Rubem Braga viveu na saudade de tudo o que perdemos ao longo dos anos, sem perceber que o estamos perdendo: mulheres entrevistadas nas ruas, encontros inesperados, instantâneos do quotidiano como fulgurações de relâmpagos.

Cabe lembrar na mesma linha de inspiração os quadros recuperados do "verde paraíso dos amores infantis" ("Casa dos Braga: memória de infância", 2ª ed. Record, 1997). O mundo foi para ele um mundo encantado, no sentido mágico da palavra, necessariamente o tempo perdido nas brumas de outrora (e entrevisto nas brumas do presente): "Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais (...). Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua (...)."

Em crônicas repletas de "sentido poético", Rubem Braga evitava o sentimentalismo, combatia-o com desencantada ironia. Nesse particular, eu lembraria "Era loura, chamava-se Norka" e, mais ainda, "Um braço de mulher", episódio, como tantos outros, da "vida inteira que poderia ter sido e que não foi". A obra-prima dessa inspiração é "Uma certa americana", que corre o risco de ser lida como história humorística pelos leitores frívolos: "Muito me inibia o cortante nome de Hélice, minha ternura do Natal de 1944 durante a guerra, na Itália. Hélice era como ela pronunciava ... e queria que eu pronunciasse o seu nome de Alice. (...) Feliz Natal onde estiveres, Hélice ingrata!".
 

 

 

 

 

 

22/09/2005