Wilson Martins
Prosa & Verso, 07.05.2005
Velha paixão
Na imensa e incontável bibliografia
sobre o livro e assuntos correlatos, o “Philobiblion”, de Richard de
Bury (1287-1345), ocupa um lugar privilegiado, sendo “a primeira
publicação a abordar exclusivamente a paixão pelos livros” (Trad.,
ap. e glossário por Marcello Rollemberg. Cotia: Ateliê, 2004). Bispo
de Durham e chanceler da Inglaterra, ele escrevia para o público, se
não restrito, pelo menos especializado, dos copistas e
bibliotecários conventuais, aos quais se deve, por paradoxo, a
preservação cultural da Antigüidade pagã, matéria seminal do que
seria o Renascimento, dois séculos depois: este tratado, dizia ele,
“purificará de todo excesso nosso amor aos livros, mostrará o
alcance de nossos desvelos e aclarará as particularidades de nosso
trabalho (...).”.
É também leitura que, aliás, corrige a
imagem idealizadora das bibliotecas medievais onde se “conservavam”
tais tesouros. Autorizado pelo rei “a investigar com toda a
liberdade todas as bibliotecas, por mais distantes que estivessem”,
o que encontrou foi uma situação calamitosa: “em vez de presentes e
dotes suntuosos, nos ofereciam abundantes cadernos imundos,
manuscritos decrépitos e coisas semelhantes, que eram, tanto para os
nossos olhos quanto para nosso coração, o mais precioso dos
presentes. (...) Os mais belos textos antigos se encontravam, todos,
em um estado miserável, cobertos de dejetos de ratos e
semidestruídos pelas traças. Os livros, recobertos em outros tempos
de púrpura ou linho e hoje completamente abandonados, deixados em um
destino aziago, pareciam ter-se convertido em moradas de ratazanas”.
Situação comparável, diga-se de
passagem, à de numerosas outras em todos os tempos, como a que
Gonçalves Dias, também em viagem de inspeção, encontrou, cinco
séculos depois, no Nordeste brasileiro, não sendo mais animador e
também de inesperada atualidade o comportamento dos estudantes: “De
fato, existe um público estudantil, geralmente mal-educado, e que,
por não se sentirem submetidos aos regulamentos de seus superiores,
chega mesmo a se orgulhar de sua estúpida ignorância. Trabalham com
insolência, se pavoneiam orgulhosamente, e ainda que careçam
totalmente de experiência, opinam sobre todos os tipos de assunto
com uma segurança inaudita”. Jovens “tiritando de frio” no gelo das
salas conventuais “e com o nariz escorrendo”, não se dignavam “a
limpá-la com um lenço para impedir que o livro que está logo embaixo
do seu nariz fique manchado”. Também dobravam as páginas para
indicar onde a leitura fora interrompida, comendo e bebendo em cima
do livro aberto, deixando “os restos de sua comida nas páginas do
códice. O estudante não pára de tagarelar com seus camaradas (...)”
— e assim por diante, o que não parece ter mudado muito de então
para cá. Isso levava o bispo a escrever todo um capítulo “De como os
livros devem ser tratados com extremo cuidado”, leitura a ser
recomendada com a maior insistência também em nossos dias.
Que os livros hajam sobrevivido a
tudo, e mais aos incêndios acidentais ou deliberados, à censura
eclesiástica de todas as religiões, para nada dizer da inevitável
ação dos anos, indica uma resiliência surpreendente por parte de
material tão frágil. O livro é indestrutível, não enquanto objeto
(sendo incontáveis os que foram queimados, muitas vezes em companhia
dos autores), mas como força civilizadora: “há um grande número de
livros que são ouvidos (Bury escrevia ao tempo da leitura em voz
alta) igualmente em Paris e em Atenas, em Roma e na Inglaterra, pois
apesar de sua aparente imobilidade, estão continuamente em movimento
e são conhecidos em todo o universo, transportados pela inteligência
dos auditores”.
Já naquele longínquo século XIV Paris
era a capital da cultura por excelência, sempre e necessariamente em
simbiose com os livros: “... Paris, verdadeiro paraíso do universo!
Ali existem bibliotecas que proporcionam à alma mais prazer que
ânforas com deliciosos perfumes. Ali se encontram todos os tipos de
livros. (...) Também ali foi onde, desatando os laços de nosso
alforje, repartimos a mãos cheias o dinheiro para tirar do pó e das
cinzas livros de inestimável valor”. Como todo fanático do livro
(único fanatismo benéfico dentre todos os outros), Richard de Bury
era um comprador insaciável: “temos podido, distribuindo dinheiro,
pôr-nos em contato com livreiros e antiquários não só em nossa
pátria, mas também na França, na Alemanha e na Itália. Para
trazer-nos os livros desejados, nada nos amedrontou: nem as
distâncias, nem o furor do mar, nem os gastos”. Sempre que se
apresentasse uma ocasião propícia, escrevia em outros capítulos,
“não devemos medir sacrifícios para comprar um livro se a conjuntura
que nos é oferecida for favorável (...) que preço parecerá demasiado
alto se se tem em conta que, ao adquirir um livro, estamos
adquirindo um bem infinito?”.
Filosofia com que não concordavam,
como seria de esperar, os “homens práticos” do seu tempo, como
tampouco concordam os do nosso. Um dos seus projetos era criar na
Universidade de Oxford uma biblioteca de artes liberais “e
enriquecê-la com nossos livros, que serviriam de ajuda aos
estudantes, que poderiam considerá-los como coisa comum e útil a
seus estudos. (...) Foi por este sincero amor ao estudo (...) que
cultivamos em nós esse desejo que causou estranhamento aos avaros,
desejo que, sem nos preocuparmos com gastos, nos fazia adquirir
manuscritos que estavam à venda, e a copiar da maneira mais
conveniente aqueles que não se podiam comprar”.
Tratando do empréstimo de livros aos
consulentes, Richard de Bury enfrentou um problema bem conhecido dos
bibliotecários de todos os países: “Sempre foi difícil conter os
homens nos limites das leis sobre honestidade”. Daí o rigor com que
redigiu um minucioso “Regulamento para o empréstimo de livros”
sabendo-se, aliás, que muitos deles eram acorrentados às mesas e
púlpitos de leitura. A custódia era confiada a cinco estudantes, dos
quais apenas três tinham autorização para fazer empréstimos, tudo
severamente anotado e sob juramento (!) tanto dos bibliotecários
quanto dos consulentes. Porque, então como hoje, muitos dos que
tomavam livros por empréstimo revelavam a maior relutância em
devolvê-los.
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