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Wilson Martins


 


Documentos de época


22.01.2005


 

Não só há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia, mas ocorrem entre elas relações e correspondências orgânicas que a nossa vã filosofia não deve ignorar. Assim, a pornocracia da Lapa nos tempos fabulosos (grandemente idealizados por cronistas e historiadores) encontrava sua literatura específica, não nos mencionados historiadores e cronistas, mas na abundante biblioteca de livros e revistas “só para homens”, da mesma forma por que, e por estranho que pareça, a literatura “só para homens” era simétrica à literatura “só para mulheres”, quero dizer, as histórias de virgindades tenazes ou violentadas, as heroínas que sucumbiam aos encantos irresistíveis de torpes sedutores, os dramas de família e a vitória final da virtude contra o vício, tudo envolto em solenes ensinamentos morais (Alessandra El Far. “Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

De então para cá, mudou completamente o código do decoro social e literário, sendo impensável, àquela altura, que um estudo como este fosse escrito por uma mulher, enquanto os pressupostos, o estilo e o vocabulário da literatura “só para homens” incorporaram-se em nossos dias à literatura canônica e convencional. É certo que algumas poucas autoras da época, em prosa e verso, publicaram obras que, para o escândalo hipócrita dos homens, pareciam avançar perigosamente pelo território proibido.

A Lapa mítica e mitológica encontrou nos livros de Luís Martins, agora reeditados, o seu romancista populista e sentimental, por influência evidente e confessada de Charles-Louis Philippe, mestre paradigmático do gênero: “Eu sonhava traduzir o ‘Bubu de Montparnasse’ (...) e colecionava sensações para a feitura de um romance que, depois de publicado, iria ter uma história bem mais romanesca do que ele próprio” (“Noturno da Lapa”, 3 ed., e Lapa, ambos na editora José Olympio, 2004). “Lapa”, o romance (1936), inscrevia-se até mimeticamente no clima esquerdizante do romance “social”, mas era inoportuno no rescaldo da intentona comunista de 1935 e no exato momento em que se preparava o golpe do Estado Novo: “a Comissão de Repressão ao Comunismo caiu em cima de mim; os exemplares do meu livro foram apreendidos e destruídos; a polícia passou a procurar-me no Rio e em São Paulo (...) e numa triste madrugada, policiais armados despertaram-me violentamente numa fazenda paulista — e me escoltaram, preso, como se eu fosse um grande criminoso, até o Gabinete de Investigações”.

Protegido do todo-poderoso ministro Agamenon Magalhães, em cujo gabinete servia e que, de toda evidência, pretendia encaminhá-los na vida pública, Luís Martins, ao perceber que se tramava “qualquer coisa”, entrou em pânico e fugiu para São Paulo, assim confirmando as intrigas dos inimigos. Agamenon Magalhães declarou mais tarde que se sentira traído pelo filho bem amado em quem tinha posto toda a sua complacência, enquanto Luís Martins jogava pela janela, com o tresloucado gesto, a proteção de que necessitava e, claro está, a sua própria carreira.

Os romances populares “de sensação”, como os denomina Alessandra El Far, eram as telenovelas do século XIX e começos do seguinte, ou, se quisermos, estas últimas respondem ao mesmo modelo dramático: “Como o próprio nome anuncia, esse tipo de narrativa trazia histórias singulares, capazes de provocar no leitor emoções pouco experimentadas na previsível rotina do cotidiano. Logo nas primeiras páginas, as personagens vítimas de alguma fatalidade, viam-se obrigadas a abandonar a segurança e a tranqüilidade de uma vida pacata para mergulhar numa sucessão de acontecimentos dramáticos, repentinos, cheios de aventura, surpreendentes, injustos e sanguinolentos”.

Os romances populares “de sensação” eram a subliteratura do romanesco, com a qual, aliás, os autores naturalistas não raro convizinhavam. Foi nesse período, lembra ela, que Max Fleiuss escreveu “Femina” (1896), Pardal Mallet, “O lar” (1888), Valentim Magalhães, “Flor de sangue” (1897), Horácio de Carvalho, “O cromo” (1888), Marques de Carvalho, “Hortênsia” (1888), Adolfo Caminha, “O bom-crioulo” (1895) e “A normalista” (1893), Raul Pompéia, “O Ateneu” (1888), Domingos Olímpio, “Luzia-Homem” (1903), e o eminente filólogo Júlio Ribeiro, “A carne” (1888).“ Eram autores interessados “na bandalheira”, exclamava Sílvio Romero à beira da apoplexia: naturalista quanto fosse, seus padrões morais não admitiam tanta licenciosidade.

Já nos anos de 1920, os casos e as causas célebres foram provocados por “Os devassos”, de Romeu de Avellar, e “Mlle Cinema”, de Benjamin Costallat: “Com base no decreto elaborado para regular a lei de imprensa, o promotor público José Gomes de Paiva acusou Benjamin Costallat e José Miccolis (...) de terem impresso em suas oficinas para depois expor à venda ‘em grande escala’, o romance ‘imoralíssimo’ intitulado ‘Os devassos’ (...). ‘Mademoiselle Cinema’ parece ter vendido, segundo seus editores, 25 mil exemplares em três edições sucessiva (...) chegando, pouco depois, ao sexagésimo milheiro na sua quinta impressão”.

Anos antes, em 1893, houve o escândalo da estréia de Figueiredo Pimentel, futuro ditador da elegância no Rio de Janeiro: “O livreiro Pedro Quaresma (...) desencadeou nos jornais uma vasta propaganda publicitária para anunciar o lançamento de ‘O aborto’, estudo naturalista”, do autor ainda jovem e desconhecido. Refletindo as ambivalências da época, todos esses escritores alegavam motivos moralizantes; o de Figueiredo Pimentel era dedicado ao filho, “para ler quando chegar à puberdade”. Quaresma era o mais célebre dos livreiros especializados nesse tipo de literatura, mas também em obras populares de natureza diferente (orações, sortilégio, jogo do bicho, etc.), nomeadamente o best-seller absoluto (até aos nossos dias, creio eu) que era “O livro de S. Cipriano”.

Alessandra El Par mostra que podemos desprezar a subliteratura como subliteratura, mas não como documento de uma época, exatamente semelhante às popularíssimas telenovelas dos nossos dias.

 

 

 


 

24/11/2005