Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 


Um clássico


30.07.2005
 


 

Sabe-se que o século XIX terminou mentalmente em 1918, abrindo espaço, por meio de um ritual simbolicamente destruidor, para a modernidade dos anos de 1920. Nas coordenadas específicas da literatura brasileira, isso ocorreu em 1916, com o falecimento de José Veríssimo e simultânea publicação de sua “História”, grande balanço e síntese judicativa do passado, situando Machado de Assis como figura emblemática do amadurecimento natural das nossas letras e vulto epônimo por excelência de uma literatura que afinal chegava à sua plenitude. Nessas perspectivas, a época 1900 é o momento ao mesmo tempo glorioso e crepuscular em que tudo se organiza num quadro coletivo à maneira das alegorias clássicas, marcando o fim de uma idade e começo de outra ainda indecisa no futuro, sem que ninguém pudesse prever a ruptura violenta que ia interromper por quatro anos o processo histórico. Essa matéria inspirou a Brito Broca (1903-1961) um dos clássicos na história das nossas letras (“A vida literária no Brasil. 1900”. 4 ed. Rio: José Olympio, 2004).

Ele mesmo era representativo e remanescente da civilização intelectual que estudou com inigualável competência e fino espírito crítico — a civilização francesa que, justamente, vivia os últimos anos do seu esplendor antes de que fosse destruída pela Segunda Guerra Mundial, não sem passar pelo ilusório rejuvenescimento do decênio de 1920. Àquela altura, a simbiose intelectual entre os dois países era de natureza orgânica e até física. O avanço dos alemães sobre Paris, aliás frustrado, escreve Brito Broca, “foi verdadeiro traumatismo moral para a maioria dos nossos escritores. Veríssimo figurou no número dos que mais sofreram com isso (...) viu-se esmagado como ao peso de um grande infortúnio. Parecia ter envelhecido dez, vinte anos — testemunhou João Luso. ‘O seu rosto, já pálido, enlividara, rugas profundas se lhe abriram na testa, ao redor dos olhos, havia em todo ele uma tristeza trágica, um imenso abatimento’ (...)”.

O soturno Veríssimo morreria antes da vitória aliada e nos anos em que, de fato, tudo parecia perdido, mas, ainda assim, teve tempo e energia para ser um ativista da “latinidade”, mito mental de sedutoras harmônicas, destinado a brilhantes desenvolvimento ideológicos: “O gesto inicial de repulsa dos homens de espírito e sensibilidade ia para a fúria desaçaimada de Guilherme II a querer esmagar a graça francesa que tanto nos encantava. Além do mais, o golpe atingia, igualmente, aquilo que não cansávamos de proclamar na época: nossa condição de latinos”. Com tanta coragem de opinião quanto escassa percuciência historiográfica, Oliveira Lima não se incluía entre os “homens de espírito e sensibilidade”, proclamando-se desafiadoramente germanófilo. De seu lado, o mito da latinidade iria confrontar-se com os não menos prestigiosos mitos do indigenismo e do mestiçamento, igualmente carregados de fortes conotações políticas.

Contudo, antes da imprevisível catástrofe, foram anos de frivolidade e doçura de viver, de literatura amena e padrões de julgamento em vias de desmonetização, mudanças particularmente sensíveis, lembra Brito Broca, no que se refere à vida de boêmia: “Por volta de 1900, as principais figuras da chamada geração boêmia de 1889 já se haviam aburguesado. Aluízio Azevedo, desde 1896 que conseguira entrar para a carreira consular, abandonando praticamente a literatura; Coelho Neto, casado, com filhos, entregue a uma produção metódica e regular, tornara-se o antípoda do boêmio. E é de Olavo Bilac, num ‘Curso de poesia’, em 1904 (...) o eloqüente protesto contra o costume de considerar-se poeta um ser estranho na criação, um homem à parte na sociedade. (...) A geração nova de então surgia nesse clima diferente, em que já não se compreendia a atitude do artista morrendo de fome, do escritor sacrificando tudo pelo ideal literário e fazendo uma própria vitória do seu desajustamento no ambiente social”.

Ocorreu, mesmo, um estilo de maneiras e comportamento completamente diverso, se não oposto, na vida literária: “à medida que decaía a boêmia dos cafés, surgia uma fauna inteiramente nova de requintados, de dândis e raffinés , com afetações de elegância, num círculo mundano, em que a literatura era cultivada como um luxo semelhante àqueles objetos complicados, aos pára-ventos japoneses do art nouveau . Em lugar dos paletós surrados, das cabeleiras casposas, os trajes pelos mais recentes figurinos de Paris e de Londres” — em suma, instalara-se a sociedade no sentido de alta sociedade, a que os escritores deviam pertencer para ser reconhecidos. A vida literária tornara-se a vida dos salões e, até, literatura de salão, cujo exemplar mais paradigmático pode ser visto em Afrânio Peixoto. É sintomático que tenha sido esse o momento de criação da Academia Brasileira de Letras (1897), então mais do que hoje o “salão transcendente” como Sainte-Beuve definiu a Francesa, modelo da nossa.

O insuspeito João Ribeiro observou mais tarde que muitos entravam para a Academia por “portas travessas”, dois deles sem qualquer livro publicado: Graça Aranha, aliás fundador, e Afrânio Peixoto, que seria o acadêmico modelar até à caricatura. Entrou para a Academia por meio da deslavada falsificação descrita por Brito Broca em todos os pormenores. Para justificar a eleição, Afrânio Peixoto escreveu rapidamente e publicou o romance “A esfinge”, considerável sucesso de vendas e de crítica: “Mal chegado às livrarias do Rio de Janeiro”, escrevia Sousa Bandeira, “'já o livro está quase esgotado. Disputam-se com avidez os raros exemplares”. É que ele havia conquistado o “público feminino”, em autêntica literatura de salão, como sempre seria a sua: “não há hoje mundana de certo tom que, à hora dos chás elegantes ou nos intervalos do Municipal, não pergunte, num sorriso adoravelmente malicioso: ‘Que me diz d’A esfinge?’”.

No pólo oposto da escala literária encontrava-se Lima Barreto: compreende-se o seu amargor ante o sucesso d’‘A esfinge’, escreve Brito Broca, “no momento em que a crítica e o público se desinteressavam de ‘Recordações do escrivão Isaías Caminha’, no qual o mestiço pobre e revoltado procurava justamente vingar-se dessa sociedade”. Sobrevivente da boêmia oitocentista dos cafés e das ruas, era um corpo estranho na vida literária dos salões e academias, instituições congeniais com a época 1900.

 

 

 


 

24/11/2005