Wilson Martins
Realismo Surrealista
15.08.2005
Gênero protéico
por definição, não há uma teoria do romance: cada autor formula
implicitamente a sua à medida em que escreve. A de Joyce nada tem em
comum com a de Dostoievski; a de Balzac não se confunde com a de
Proust; a de Machado de Assis distingue-se da de Faulkner, e assim
por diante. Bem entendido, há "contaminações" a partir da obra
original, seja por influências diretas, seja por imposição da
matéria, havendo até antecipações sugestivas: Dom Carmurro
inspira-se na mesma procura do tempo perdido a que Proust se
entregaria muito depois. Seja como for, o bom romance e, mais ainda,
o grande romance, têm individualidade inconfundível, apesar de
similaridades ocasionais.
Coerente com suas
conhecidas propensões para o experimentalismo, Nelson de Oliveira
exprimiu a sua própria por intermédio de um personagem: "Você quer
se tornar um grande escritor? Então tem de se tornar inimigo do
ensino institucionalizado, da união entre homem e mulher
institucionalizada, da declamação, da falsa sensibilidade, da
descrição pormenorizada e objetiva do mundo. Escreva um romance
cujas personagens multifacetadas se movam em ambientes deformados
por alucinações, pois nessa deformação é que reside a única
realidade possível. Para tratar os temas como os velhos poetas e os
retóricos senis, apresentando os objetos diretamente. Se aproxime da
ilusão, do mistério, da obscuridade. Tome contato com a música, pois
é por intermédio dela que o esotérico, o sagrado e o sobrenatural se
manifestam mais claramente […]".
Aí estão, em
síntese por assim dizer didática, os princípios que o nortearam ao
escrever O oitavo dia da semana (Curitiba: Travessa dos
Editores, 2005). Discípulo evidente de Campos de Carvalho, de quem,
segundo Paulo Sandrini, "é herdeiro mais que legítimo", fascinado,
em geral, pelos irregulares e rebeldes da literatura, Nelson de
Oliveira segue literalmente os conselhos do seu mentor: "Mas não
caia no erro, jamais, de se tornar exageradamente descritivo. Os
escritores de hoje não sabem fazer outra coisa a não ser descrever,
descrever, descrever, nomear, nomear tudo o que passa sob as suas
fuças […]. Em vez de deitar no papel os detalhes de uma cor, de uma
melodia, de um aroma, você deve se preocupar em delinear o efeito
geral ou particular de tal cor, tal melodia e tal aroma em quem está
próximo. Sugerir, eis o segredo".
Nessa busca do
realismo (tropismo natural do romance) através de processos
surrealistas, o romance acabou por se compor de uma série recorrente
de "quadros" com tênue ligação entre si, muitos deles arbitrários e
desconectados do conjunto. Tomando a sugestão "como forma de se
aproximar da alma e da natureza", o romance se perde em evocações
inoportunas, para nada dizer das digressões claramente artificiais.
Assim, por exemplo, não é verossimil que, num momento de desespero,
procurando localizar a filha desaparecida, a protagonista se
entregue a reminiscências escolares: "A irmã Leonor manuseava com
extrema paciência antigos livros de diversos tamanhos. Livros com
capa de couro trabalhada com meticulosidade […]", etc., etc., em
evocações que se prolongam por páginas e páginas no claro propósito
de criar suspense. O mesmo acontece com a pormenorizada descrição do
suntuoso jantar a que se entrega um negociante cujo papel no
desenvolvimento restante da história não chegamos a perceber. É
apenas um intermezzo, porque, logo em seguida, Mariana retoma os
devaneios de juventude.
Ao lado disso, há
vigorosos trechos em que a descrição realista transforma-se em visão
surrealista, no melhor estilo Campos de Carvalho: "Nos quinze
minutos seguintes a calçada até então vazia e sossegada, viu-se
tomada por um grupo de vagabundos que, caminhando quase em fila
indiana, vinham da ponte, sérios, circunspectos, meio adormecidos,
todavia sem destino aparente. Pareciam cegados por uma luz muito
forte, pois a maioria acabou colidindo com a traseira da kombi.
Foram poucos os que conseguiram desviar a tempo de evitar o choque.
Um a um foram enfiando as fuças na porta traseira do veículo
estacionado quase em frente ao Antares", habitação coletiva que,
desde o nome, evoca o romance de Erico Verissimo: é um romance
unanimista no qual o prédio deteriorado corresponde simétrica e
ficcionalmente ao cemitério gaúcho.
Em tudo isso,
permaneceram sem explicação tanto o desaparecimento da menina
retardada quanto o seu aparecimento num programa infantil de
televisão, nem, em seguida, quando perambula pelas ruas em companhia
de um insano que a leva para o ambiente sórdido no qual acaba por
violentá-la e matá-la: "A sala onde se encontram, pequena, porém
atulhada de cacarecos […]. A Marília sente na omoplata uma tremenda
pancada […] as costas batem na superfície lunar, o corpo
desarticulado congela-se, esparrama-se, enquanto o homem de capa
preta toma posição sobre ele […]".
Algumas técnicas
do novo romance francês, repudiadas como inconseqüências de
juventude pelo agora acadêmico Robbe-Grillet, passaram para Nelson
de Oliveira, como a repetição literal de cenas anteriores, além do
minucioso inventário de objetos em salas e quartos. Mas, é também um
romance em que as paredes falam (!), levando o surrealismo longe
demais, como no episódio em que Marília, tendo comido a refeição
deteriorada servida pelo raptor, é tomada por incoercíveis ânsias de
vômito: "Coitada. Vai se acabar, desse jeito – a parede do banheiro
comenta com ar de reprovação. […] A parede do corredor logo
responde: – Jovem, humpf! A grande desvantagem da juventude é essa
ingenuidade desmedida […]".
Percebe-se que,
em Nelson de Oliveira, a teoria do romance consiste em "desprezar a
literatura de cunho social, econômico, de costumes" para "vestir a
máscara da tragédia ou, melhor ainda, do bufão", sem se preocupar
demasiado com a verossimilhança nem com a coerência dos caracteres.
Há trechos de forte descrição, como o engarrafamento dos automóveis
na estrada paulista, lembrando, como é inevitável, o conto clássico
de Júlio Cortázar em situação semelhante – espetáculo surrealista
que a realidade oferece com mais freqüência do que desejaríamos.
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