O romance de Sílvio Fiorani (Investigação sobre Ariel. São Paulo: A 
			Girafa, 2005) pressupõe leitores literariamente educados, capazes, 
			não só de acompanhar a intriga extremamente complexa (inclusive os 
			seus diversos “tempos” narrativos), mas, ainda, de identificar as 
			múltiplas alusões e referências que se cruzam a respeito de autores 
			e obras, acabando por caracterizá-lo como “romance do romance”, 
			quero dizer, da “idéia” de romance.
			
            Assim, para começar, há dois narradores paralelos, complementares e 
			antagônicos; Francisco, com seu diário e anotações, ao lado de 
			Dédalo em contracanto especular, mostrando a narrativa do primeiro 
			em imagens invertidas, e vice-versa. Ora, Francisco, figura central 
			da história, é autor do romance intitulado “O evangelho segundo 
			Judas”, ou seja, o próprio Sílvio Fiorani: “Afinal, sou ou não sou o 
			autor deste livro?”, pergunta-se este último, admitindo que bem se 
			pode tratar de Francisco: “a verdade é que nunca tive total controle 
			sobre os finais de minhas histórias, e, ao cabo, elas sempre me 
			surpreenderam”.
			
            Contudo, existem também “Os apontamentos de Castor”, que, na 
			verdade, não sabemos exatamente quem seja, mas não importa: “Achei 
			natural que a discussão crucial do romance acabasse por desviar, 
			inevitavelmente, para a questão da sua autoria. Francisco havia 
			criado Dédalo ou Dédalo havia criado Francisco?”, acrescentando: 
			“Tratava-se de um impasse semelhante ao que ocorrera em ‘O príncipe 
			das trevas’, e era estranho que aquela relativa simetria com o 
			romance de Durrell não incomodasse Francisco”. De fato, Lawrence 
			Durrell (1912-1990), às vezes chamado familiarmente de Larry por um 
			dos personagens, é uma presença obsessiva no espírito de Francisco, 
			a tal ponto que ele mesmo estabelece repetidas vezes as 
			correspondências da técnica narrativa, para nada dizer com o próprio 
			Fiorani: “Começava a viver, e não sabia, um enorme vazio interior, 
			uma longa crise que só terminaria cerca de dois anos depois quando 
			comecei a escrever as primeiras páginas do romance de Judas”.
			
            São dois os problemas técnicos a enfrentar: por um lado, a dupla e, 
			mesmo, tripla autoria (Fiorani/Francisco/Dédalo) e, por outro, a 
			homogeneização dos tempos narrativos e respectivas “épocas”, tudo 
			resolvido com sabedoria e finura. Quanto ao primeiro: “tenho que 
			reconhecer que eu estava, também, ferido em meu sentimento de posse 
			(...). Ao mesmo tempo em que eu trouxera Dédalo para dentro do 
			contexto de minha criação, ele a transformara por dentro à minha 
			revelia (...) havia ainda o fato de que eu e Dédalo, cada um à sua 
			maneira, havíamos mudado interiormente (...). E interferíramos um na 
			criação do outro de tal forma que, no futuro, nenhum leitor haveria 
			de saber onde terminaria o texto de um e iniciaria o do outro (...). 
			No final daquela inusitada experiência de criação, eu me 
			surpreendia, não raro, escrevendo como se fosse Dédalo, como se ele 
			me habitasse, o que imaginei que talvez estivesse ocorrendo também 
			com ele”.
			
            A parte mais intrigante desta obra-prima romanesca é a simbiose Raul 
			Pompéia/Ariel/Serginho (do “Ateneu”), reciprocamente afirmada em 
			algumas passagens, enquanto em outras cada um deles recupera a 
			própria personalidade. Muitos episódios do colégio são mencionados 
			como ocorridos com Ariel (isto é, Pompéia), sem excluir as alusões 
			biográficas reais a este último: “No mundo das aparências, Ariel 
			teria consumido o último ano de sua vida assoberbado apenas pela 
			luta florianista, obcecado pelo messianismo encarnado no marechal”. 
			Há, mesmo, referências a obras reais: “No entanto, Rodrigo Otávio, 
			que não se sabe se é aquele mesmo Rodrigo tantas vezes citado por 
			Ariel e que passava por ser seu amigo íntimo (...).” Estamos aqui 
			numa galeria de espelhos: Rodrigo Otávio era, de fato, amigo de Raul 
			Pompéia, mas o testemunho de que “ele tornara-se taciturno nos 
			últimos tempos” só se tornou conhecido, como é óbvio, depois do seu 
			falecimento. Ou suicídio, incontestável na vida real, mas que 
			continua sendo, apesar de tudo, um tópico das reflexões dos 
			personagens.
			
            Há passagens em que Ariel/Pompéia, em paralelo com Ariel/Serginho, 
			terminam por se hipostasiar uns nos outros, como, de resto, ao longo 
			do romance: “Ariel acabou por desenvolver uma espécie de culto à 
			figura do marechal, em quem possivelmente vira personificado um 
			certo mito da paternidade ideal, esse Floriano que ele via imenso e 
			que aplicara contra os que a ele se opunham uma espécie de guerra de 
			usura, econômica, lenta, mas fatigante, irresistível, algo que Ariel 
			exaltou como uma das qualidades supremas de um líder verdadeiro”. 
			Eis o que um dos participantes diz a Francisco, aludindo à sua 
			juventude: “Estavas assoberbado (...) com gente como o Amoedo, o 
			Rodrigo e, mais, o Pompéia, a quem visivelmente admiravas com um 
			certo fervor, e hoje vejo que com razão. O Pompéia já havia então 
			publicado as suas memórias, havia-se desnudado (sic). E fizera 
			sucesso. E, estranhamente, as revelações da vida íntima entre os 
			meninos do Colégio Abílio pareciam não ter escandalizado ninguém”.
			
            São numerosas e nada ambíguas as alusões ao ambiente de 
			homossexualismo, pelo menos larvar, no Colégio, sobre o que, diga-se 
			de passagem, “O Ateneu” não deixa dúvidas. O caso Serginho/Pompéia 
			(na medida em que é autobiográfico) está no limite, sem excluir as 
			alusões de Rodrigo Otávio às disfunções orgânicas do romancista. 
			Caberia, ainda, mencionar a “presença” de Machado de Assis em 
			diversas cenas provindas diretamente de “Esaú e Jacó”, matéria a ser 
			estudada em análise mais pormenorizada sugerida pelas linhas 
			cruzadas do romance. Um dos personagens “já havia então ido outra 
			vez à cabocla do Morro do Castelo e dela ouvira um tanto de coisas 
			que lhe aumentaram ainda mais a credibilidade” — enquanto outro 
			episódio é simples paráfrase de um conto machadiano, contaminações 
			expressamente reconhecidas numa das “Anotações de Dédalo”.
			
            Em suma, “Investigação sobre Ariel” é o romance imaginário de Raul 
			Pompéia superposto ao Raul Pompéia da realidade e da literatura, 
			autor de um romance autobiográfico que bem poderá receber o 
			qualificativo que Sílvio Fiorani atribui ao seu próprio nas linhas 
			finais: uma aventura intelectual.