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Wilson Martins


 


Jogo de espelhos


11.06.2005
 


 

O romance de Sílvio Fiorani (Investigação sobre Ariel. São Paulo: A Girafa, 2005) pressupõe leitores literariamente educados, capazes, não só de acompanhar a intriga extremamente complexa (inclusive os seus diversos “tempos” narrativos), mas, ainda, de identificar as múltiplas alusões e referências que se cruzam a respeito de autores e obras, acabando por caracterizá-lo como “romance do romance”, quero dizer, da “idéia” de romance.

Assim, para começar, há dois narradores paralelos, complementares e antagônicos; Francisco, com seu diário e anotações, ao lado de Dédalo em contracanto especular, mostrando a narrativa do primeiro em imagens invertidas, e vice-versa. Ora, Francisco, figura central da história, é autor do romance intitulado “O evangelho segundo Judas”, ou seja, o próprio Sílvio Fiorani: “Afinal, sou ou não sou o autor deste livro?”, pergunta-se este último, admitindo que bem se pode tratar de Francisco: “a verdade é que nunca tive total controle sobre os finais de minhas histórias, e, ao cabo, elas sempre me surpreenderam”.

Contudo, existem também “Os apontamentos de Castor”, que, na verdade, não sabemos exatamente quem seja, mas não importa: “Achei natural que a discussão crucial do romance acabasse por desviar, inevitavelmente, para a questão da sua autoria. Francisco havia criado Dédalo ou Dédalo havia criado Francisco?”, acrescentando: “Tratava-se de um impasse semelhante ao que ocorrera em ‘O príncipe das trevas’, e era estranho que aquela relativa simetria com o romance de Durrell não incomodasse Francisco”. De fato, Lawrence Durrell (1912-1990), às vezes chamado familiarmente de Larry por um dos personagens, é uma presença obsessiva no espírito de Francisco, a tal ponto que ele mesmo estabelece repetidas vezes as correspondências da técnica narrativa, para nada dizer com o próprio Fiorani: “Começava a viver, e não sabia, um enorme vazio interior, uma longa crise que só terminaria cerca de dois anos depois quando comecei a escrever as primeiras páginas do romance de Judas”.

São dois os problemas técnicos a enfrentar: por um lado, a dupla e, mesmo, tripla autoria (Fiorani/Francisco/Dédalo) e, por outro, a homogeneização dos tempos narrativos e respectivas “épocas”, tudo resolvido com sabedoria e finura. Quanto ao primeiro: “tenho que reconhecer que eu estava, também, ferido em meu sentimento de posse (...). Ao mesmo tempo em que eu trouxera Dédalo para dentro do contexto de minha criação, ele a transformara por dentro à minha revelia (...) havia ainda o fato de que eu e Dédalo, cada um à sua maneira, havíamos mudado interiormente (...). E interferíramos um na criação do outro de tal forma que, no futuro, nenhum leitor haveria de saber onde terminaria o texto de um e iniciaria o do outro (...). No final daquela inusitada experiência de criação, eu me surpreendia, não raro, escrevendo como se fosse Dédalo, como se ele me habitasse, o que imaginei que talvez estivesse ocorrendo também com ele”.

A parte mais intrigante desta obra-prima romanesca é a simbiose Raul Pompéia/Ariel/Serginho (do “Ateneu”), reciprocamente afirmada em algumas passagens, enquanto em outras cada um deles recupera a própria personalidade. Muitos episódios do colégio são mencionados como ocorridos com Ariel (isto é, Pompéia), sem excluir as alusões biográficas reais a este último: “No mundo das aparências, Ariel teria consumido o último ano de sua vida assoberbado apenas pela luta florianista, obcecado pelo messianismo encarnado no marechal”. Há, mesmo, referências a obras reais: “No entanto, Rodrigo Otávio, que não se sabe se é aquele mesmo Rodrigo tantas vezes citado por Ariel e que passava por ser seu amigo íntimo (...).” Estamos aqui numa galeria de espelhos: Rodrigo Otávio era, de fato, amigo de Raul Pompéia, mas o testemunho de que “ele tornara-se taciturno nos últimos tempos” só se tornou conhecido, como é óbvio, depois do seu falecimento. Ou suicídio, incontestável na vida real, mas que continua sendo, apesar de tudo, um tópico das reflexões dos personagens.

Há passagens em que Ariel/Pompéia, em paralelo com Ariel/Serginho, terminam por se hipostasiar uns nos outros, como, de resto, ao longo do romance: “Ariel acabou por desenvolver uma espécie de culto à figura do marechal, em quem possivelmente vira personificado um certo mito da paternidade ideal, esse Floriano que ele via imenso e que aplicara contra os que a ele se opunham uma espécie de guerra de usura, econômica, lenta, mas fatigante, irresistível, algo que Ariel exaltou como uma das qualidades supremas de um líder verdadeiro”. Eis o que um dos participantes diz a Francisco, aludindo à sua juventude: “Estavas assoberbado (...) com gente como o Amoedo, o Rodrigo e, mais, o Pompéia, a quem visivelmente admiravas com um certo fervor, e hoje vejo que com razão. O Pompéia já havia então publicado as suas memórias, havia-se desnudado (sic). E fizera sucesso. E, estranhamente, as revelações da vida íntima entre os meninos do Colégio Abílio pareciam não ter escandalizado ninguém”.

São numerosas e nada ambíguas as alusões ao ambiente de homossexualismo, pelo menos larvar, no Colégio, sobre o que, diga-se de passagem, “O Ateneu” não deixa dúvidas. O caso Serginho/Pompéia (na medida em que é autobiográfico) está no limite, sem excluir as alusões de Rodrigo Otávio às disfunções orgânicas do romancista. Caberia, ainda, mencionar a “presença” de Machado de Assis em diversas cenas provindas diretamente de “Esaú e Jacó”, matéria a ser estudada em análise mais pormenorizada sugerida pelas linhas cruzadas do romance. Um dos personagens “já havia então ido outra vez à cabocla do Morro do Castelo e dela ouvira um tanto de coisas que lhe aumentaram ainda mais a credibilidade” — enquanto outro episódio é simples paráfrase de um conto machadiano, contaminações expressamente reconhecidas numa das “Anotações de Dédalo”.

Em suma, “Investigação sobre Ariel” é o romance imaginário de Raul Pompéia superposto ao Raul Pompéia da realidade e da literatura, autor de um romance autobiográfico que bem poderá receber o qualificativo que Sílvio Fiorani atribui ao seu próprio nas linhas finais: uma aventura intelectual.

 

 

 


 

24/11/2005