Se tudo o que se pode esperar e exigir de uma pesquisa
historiográfica é o domínio da matéria ao lado do espírito
analítico, concomitante com estilo narrativo de alta qualidade,
além, bem entendido, de originalidade temática, o estudo de Maria
Aparecida Ribeiro (“A Carta de Caminha e seus ecos”. Estudo e
antologia. Coimbra: Angelus Novus, 2003) deve ser posto desde logo
entre as obras modelares. Justamente por ter sido objeto de
incontáveis (e repetitivos...) comentários — filológicos,
históricos, polêmicos, ideológicos ou simplesmente parafrásicos — a
Carta ainda esperava pelo enquadramento na história intelectual e
artística de Portugal e do Brasil, o que especialistas e
não-especialistas têm até agora negligenciado.
Trata-se, diz a autora com justeza, do texto mais importante sobre o
descobrimento do Brasil, a começar pela qualidade literária, no que
se distingue, já no ponto de partida, de todos os similares. Escrita
em 1500, a Carta ficou recolhida entre os papéis da Torre do Tombo
até que, em 1773, “José Seabra Silva, então na função de Guarda-Mor,
mandou que dela se fizesse uma cópia, em boa letra, para sua melhor
inteligência. Em 1817, publicou-a Aires do Casal” — iniciando a
lenta caminhada que iria afinal integrá-la na História do Brasil.
Caminha era um intelectual, como caberia qualificá-lo em
terminologia moderna, ligado às letras por tradição familiar: “Seu
pai, Vasco Fernandes de Caminha, educado pelo chanceler e escrivão
das apelações do arcebispo de Braga, exerceu vários cargos que
implicavam a prática da escrita (...). Ele próprio, Pêro Vaz,
sucedeu ao pai (como Mestre da Balança da cidade do Porto), além de,
como cidadão do Porto (...) ter assinado inúmeras atas de sessões
realizadas nos Paços da Relação daquela cidade e ter sido escolhido
para redigir capítulos apresentados às cortes de 1498, o que mostra
a sua condição de homem participante e letrado”. Tinha trânsito e
convivência nos altos círculos administrativos, de forma que o seu
pedido em favor do genro — simples transferência de um posto
longínquo para a capital do país — não tem o sentido oportunístico
que comentadores superficiais e anacrônicos lhe têm atribuído. Os
termos em que foi feito, além de revelarem familiaridade com a
pessoa do rei, mostram que se trata de pretensão corriqueira, então
como hoje, nos escalões burocráticos.
No caso, observa ainda Maria Aparecida Ribeiro. “Caminha é alguém
que viveu o acontecimento da descoberta e que o viveu coletivamente
como ‘nós’. Um ‘nós’ que implica expansão da fé e do império (...).
É como participante de uma empresa do rei de Portugal que ele
escreve a D. Manoel, para dar a ‘nova do achamento desta vossa terra
nova, que se ora nesta navegação achou’; é também em seu nome e no
dos outros navegantes que faz um balanço das dimensões e riquezas do
novo território. Daí a utilização da primeira pessoa do plural, na
redação dos tópicos iniciais do que seria o início de uma ‘pequena
enciclopédia do mundo descoberto’”.
Mas a grande novidade deste livro está na demonstração da imensa
genealogia da Carta através dos tempos. Para isso muito deve ter
contribuído, creio eu, a metamorfose da Carta em termos plásticos no
famoso quadro de Vítor Meireles, transformando em imagem sensorial e
atual o que era apenas um discurso intelectual. Multiplicado em
livros didáticos e em obras de referência, o quadro foi o maior
fator de inclusão da Carta em nosso ideário coletivo: “Meireles
começa em Paris, em 1858, uma grande composição, para a qual toma
por base o texto da ‘Carta de Achamento’, referente à primeira
missa. (...) Vítor Meireles aprimoraria a paisagem, seguindo a
sugestão do mestre (Porto Alegre) quanto à forma das árvores
brasileiras: ‘troncos retos, carregados de plantas diversas, altas e
com coqueiros ou palmitos pelo meio’. (...) E como não se tratasse
apenas de brasilidade, mas também de técnica, Robert Fleury,
professor da Académie des Beaux-Arts, foi chamado a opinar: para dar
maior variedade de posição dos índios (...) desapareceu um selvagem
que estava de joelhos diante de outro que permanece de corpo
inteiro, no canto inferior direito da versão conhecida do quadro”.
Assim, Vítor Meireles reescreveu com os pincéis o que Caminha havia
escrito com a pena de ganso.
Do romance histórico para os palcos, da poesia para as artes
plásticas, dos comentários eruditos para as paródias irreverentes, a
Carta acabou tendo uma progênie numerosa, da qual não tínhamos
consciência até que Maria Aparecida Ribeiro lhe traçasse a “árvore”
numa exposição coerente: Varnhagen e Alberto Pimentel, Afonso
Ribeiro e Pereira da Silva, Aurélio Figueiredo e Olavo Bilac, Murilo
Mendes e Mendes Fradique, os dois Andrades do Modernismo, todos e
muitos outros pagaram o seu tributo à “Carta de Achamento”. Para
destacar um único exemplo, cabe recordar a “Carta pras Icamiabas”,
na qual “o herói inverte a situação da ‘Carta’ de Caminha: não é
mais o súdito-escrivão que envia ao rei novas do descobrimento de
uma terra fértil e da sua estranha gente, é o índio ‘Imperator’
(Macunaíma depois de ter ficado viúvo de Ci passara a governar as
Amazonas), que escreve às suas governadas, criticando os males da
cidade, o tão exaltado progresso, falando da prolixidade e dos
‘dialetos de erudição’ que levam os paulistanos (leia-se aqui
citadinos) a chamarem Amazonas às Icamiabas”.
A carta modernista prestava homenagem à carta quinhentista por meio
da paródia, retomando indiretamente a grande questão da “humanidade”
ou da “animalidade” dos índios, apaixonado debate que ocupou os
espíritos naqueles tempos primevos. Em compensação, o comportamento
recíproco de índios e portugueses foi dos mais espontâneos e
desprevenidos, apesar da indiscreta curiosidade destes últimos com
relação às “vergonhas” das índias, que, aliás, as expunham sem
nenhuma vergonha, diz o trocadilhista Caminha.