Wilson Martins
Sobre a crítica
03.09.2005
Os críticos são guardiães de cemitério, dizia Jean-Paul Sartre com
ironia bem gaulesa – mas seria preciso acrescentar que são também
zelosos curadores da Galeria da Fama, onde buscos e retratos
testemunham das glórias que passaram. Chamando-se a si mesmos de
imortais desde a fundação da Academia Francesa e acreditando
realmente sê-lo, os escritores franceses dos séculos 17/18, que eram
então os grandes escritores do mundo, foram reunidos por Voltaire no
Templo do Gosto *1733), onde se veneravam as regras do bom gosto e
da correção lingüística, de forma que o assunto tem mais importância
e seriedade do que pareceria à primeira vista.
Contudo, não eram regras arbitrárias fixadas pelo bizantinismo de
gramáticos ociosos: o critério da correção lingüística, ensinava
Vaugelas, mestre supremo, era o uso das pessoas educadas de Paris. É
desses cânones, de perto ou de longe, que deriva o código da crítica
literária no Brasil, configurada a partir do século 19 pela doutrina
e pela prática dos grandes críticos, Sílvio Romero e José Veríssimo,
sucedidos, no seguinte, por Alceu Amoroso Lima e Álvaro Lins, cada
um deles refletindo, como era inevitável, a marcha das idéias
libertárias. Na verdade, Sílvio Romero, com seu inquietante instinto
de matador em série, jamais praticou a crítica regular e
sistemática: era mais um homem do livro que do jornal, no que se
distringuia de José Veríssimo, homem de jornal que chegou ao livro
por derivação. Sílvio Romero não servia para guardião do cemitério
nem para curador da Galeria da Fama, tendo antes a tendência de não
deixar os mortos em paz – nem os vivos, é preciso reconhecê-lo.
Desnecessário acrescentar que só aceitava a Galeria da Fama se
rearranjada ao seu gosto ou ao gosto das novidades científicas que
se multiplicavam e jamais foram tão abundantes quanto no seu tempo.
O soturno José Veríssimo, de temperamente monástico, entrou para a
literatura como se consagrasse numa ordem religiosa – e das mais
rigorosas. Se lhe sobravam equilíbrio intelectual e desassombro de
julgamento, iniferente, como era, às vaidades fáceis e às verdades
aceitas, faltava-lhe o calor humano e a vitalidade animal de Sílvio
Romero. De qualquer modo, são esses os patronos da corporação entre
nós, um com o fascínio da cientificidade (seu ideal confessado era
fazer crítica “naturalista”, ou seja, na linha dos sistemas
científicos em voga), o outro em busca do velocino de ouro
literário, encontrando-o afinal na obra de Machado de Assis.
A crítica literária tem compromisso com a atualidade e a ambição da
permanência: é por isso que os críticos reúnem periodicamente em
volume os seus trabalhos, como capítulos virtuais da futura história
da literatura, para o qual, em linguagem de ourivessaria, serviam de
contraste, isto é, como índice de avaliação. Sainte-Beuve, santo
protetor da irmandade, reuniu em 16 volumes as Causeries du lundi
que, com o passar do tempo, transfiguraram-se em história literária;
José Veríssimo deixou os Estudos de literatura brasileira em seis
volumes, a que se acrescentou o sétimo postumamente; os Estudos de
Tristão de Athayde, referentes ao seu período de crítico militante,
compõem cinco volumes, enquanto os sete do Jornal da crítica, de
Álvaro Lins, foram posteriormente reformulado e republicados com
títulos diferentes, sem esquecer os dez volumes de Sérgio Milliet no
Diário crítico. A tradição continua: podemos acrescentar-lhes os
Ensaios escolhidos, de Ivan Junqueira (I: De poesia e poetas; II: Da
prosa de ficção, do ensaísmo e da crítica literária. São Paulo: A
Girafa, 2005). De minha parte, os 15 volumes dos Pontos de vista
(São Paulo: T.A. Queiroz, 1991/2004) reúnem parte do que escrevi n'O
Estado de S.Paulo durante 20 anos a partir de 1954, e n'O Globo, de
1995 a 2005, além de outros periódicos. Retomo no Jornal do Brasil
as funções de crítico titular, onde as exerci entre 1978 e 1995. A
editora Topbooks programou uma nova série que, com o título de O ano
literário, compreenderá a matéria de 2005 em diante. Nesse contexto,
cabe, talvez, repetir que sempre entendi a crítica como um diálogo,
ou, antes, um “triálogo”, no qual se ouvem as vozes do Autor, com a
obra, do Crítico, com a análise, e do Leitor, com o julgamento
final, instituído a partir das perspectivas abertas pelos dois
primeiros. Assim, é na verdade, o leitor que estabelece o circuito
literário, é ele que faz “passar a corrente”. Claro, Autor, Crítico
e Leitor são entidades nominalistas, não pessoas reais: trata-se de
personae complementares, nas quais a literatura simultaneamente se
hipostasia. Entre parênteses, bem sei que a raiz da palavra diálogo
é dia, significando “através”, e não di, significando “dois”,
inocente trocadilho que servirá para veicular a idéia.
Lembremos, ainda, que a opinião crítica não é imposta por nenhum
crítico individualmente considerado, mas pelo contraste das diversas
reações que a obra provoca: o autor é a fonte da idéia criadora; o
leitor é o mundo coletivo em que o texto vai atuar. Não há, pois,
autor, crítico e leitor, mas autores, críticos e leitores. O
“triálogo” se resolve, afinal, num colóquio, num ágape, mais
socrático, isto é, crítico e irônico do que platoniano, isto é,
doutrinário e docente. Todo o processo é de natureza dialética, não
um desenvolvimento linear que irá do autor ao leitor, passando pela
“estação de recalque” representada pelo crítico.
Nesse quadro, a Nova Crítica norte-americana, aliás simples decalque
da prática pedagógica aplicada pelos franceses no ensino médio,
inoculou na análise literária o vírus mortal responsável pela febre
teorizante que se manifestou internacionalmente nas duas décadas
seguintes, cada grupo mais pedante que os anteriores e todos movidos
por um vocábulo absconso, próprio dos médicos de Molière. Ainda hoje
há recessivos brasileiros que se referem aos “sememas” e aos
“semantemas”, às “camadas imagéticas” e à “estruturação semêmica”.
Espantado ao ler uma dessas exegeses de sua poesia, Carlos Drummond
de Andrade escreveu a obra-prima do sarcasmo que é o poema
“Exorcismo”: “Da ortolinguagem, libera nos, Domine... Da semia... Do
sema, do semema, do semantema... Libera-nos, Domine [...]”
Ao que tudo indica, o exorcismo surtiu efeito.
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