Wilson Martins
Simbiose cultural
08.10.2005
Sob a direção de João de Scantimburgo, a Revista Brasileira,
herdeira de uma linhagem de títulos ilustres, é a melhor publicação
do gênero entre nós e não deve temer o cotejo com as similares de
qualquer outro país. O número de abril/maio/junho de 2005 é dedicado
à França e a sua civilização, em particular no que se refere às
relações com o Brasil, comemoração de glórias passadas e algo
reivindicativa (tanto no país de origem quanto no nosso), sendo,
como foram, os franceses, e por longo tempo, os nossos mestres de
pensamento e de gosto, império que começou a desaparecer no buraco
negro da história com a Segunda Guerra Mundial. Basta lembrar, como
sinal ominoso, que o aprendizado da língua francesa tornou-se
eufemisticamente facultativo no ensino médio, com as consequências
que se conhecem.
Tempo houve em que ensaístas e críticos citavam os autores franceses
no original, para nada dizer do emprego obsessivo de palavras e
locuções da mesma origem, na língua falada e escrita, ridículo
esnobismo já satirizado por José de Alencar em uma de suas peças
(agora substituído pelo caipirismo não menos ridículo de dizer em
inglês o que se pode perfeitamente dizer em português). Essa
simbiose ocorreu com particular intensidade no século 19, havendo,
como exemplo paradigmático, a influência que a música brasileira
erudita, semi-erudita e folclórica exerceu sobre Darius Milhaud. O
episódio é freqüentemente lembrado, quase sempre de maneira
incidental, mas só agora deixou de ser uma história mal-contada para
ser bem contada por Elizabeth Travassos e Manoel Aranha Corrêa do
Lago (“Darius Milhaud e os compositores de tangos, maxixes, sambas e
cateretês” ).
É inegável o profundo impacto que essa música exerceu sobre a
sensibilidade do compositor francês, a tal ponto que, muitos anos
depois, uma de suas rapsódias recebeu o nome de “Saudades do
Brasil”. Sempre referido como curiosidade desvanecedora, essa
história tem um lado de ténébreuse affarire , para lembrar, com
algum exagero, o título balzaquiano. De fato, Darius Milhaud,
chegando ao Brasil, logo passou a freqüentar os meios artísticos,
interessando-se sobretudo “pelo que se ouvia nas salas de cinema da
Avenida Rio Branco, nos teatros e gramofones da Rua do Ouvidor:
polkas, schottish, valsas, emboladas, tangos, maxixes, sambas, e
cateretês”. Contudo, “um aspecto da apropriação das peças
brasileiras por Milhaud, há muito tempo observado, é a ausência de
qualquer referência a seus autores. (...) A citação sem referência
aos autores transformou os tangos, maxixes, sambas e cateretês em
musique populaire (...) numa operação que feriu sensibilidades no
Brasil ”.
Aspecto particularmente valioso deste ensaio é a reprodução dos
compassos de cada um dos temas de peças brasileiras citadas por
Milhaud. Cabe destacar ainda neste número da Revista Brasileira o
magistral ensaio de Alfredo Bosi (“O positivismo no Brasil: uma
ideologia de longa duração”) e o excelente capítulo da história de
nossa imprensa com a biografia de um dos seus fundadores mais
importantes (Cícero Sandroni, “Pierre Plancher e o Jornal do
Comércio”). Este último, quando desembarcou no Rio, “imaginava-se
livre das perseguições (políticas), mas estava enganado. Ao
apresentar na Alfândega os documentos de identificação recebeu dos
policiais do Império ordem de prisão sob a acusação de ser
revolucionário e falsário”. Assim começava a sua vida no Brasil o
fundador do jornal que, mais do que qualquer outro, encarnou entre
nós o pensamento conservador, tanto na política quanto nas letras:
dizia-se durante o II Reinado que uma “Vária” do Jornal do Comércio
podia derrubar o Gabinete. Acrescente-se que foi o órgão quase
oficial da Academia Brasileira de Letras, publicando na íntegra os
discurso de posse e os ensaios acadêmicos.
Alfredo Bosi situou o nosso Positivismo nas perspectivas de um
sistema de pensamento, para além dos aspectos peripeciais e
anedóticos em que é geralmente tratado, sem excluir o protótipo da
matéria que é o livro de Ivan Lins. É certo que os brasileiros
transformaram a ideologia em teologia, articulando o pensamento em
crenças dogmáticas, com todas as limitações e especificações que
isso implicava. De qualquer maneira, foi ou é um capítulo de nossa
história que não pode ser ignorado, devendo-se abordá-lo “sem ira e
com estudo”. A Constituinte republicana estava em atraso mental com
relação aos positivistas, rejeitando algumas de suas propostas, como
a extensão do voto aos mendigos, analfabetos e praças de pré a
liberdade de testar e a abolição dos privilégios hereditários, além
de outras. Em conclusão, Alfredo Bosi escreve que “no Brasil o
positivismo social dos homens de 30 (...) enxertou-se, como pôde,
pragmaticamente, naquele novo tronco internacional (o dos sistema
políticos então vigorantes)”. A Assembléia Constituinte elegeu
Getúlio Vargas em 1934, consagrando desde modo, em nível nacional,
os líderes do republicanismo gaúcho.
Fala-se, de uma forma geral, na influência das letras francesas em
nossa vida literária, mas Ubiratan Machado, consultando a
bibliografia da revista Leitura no período de 1941 a 45, levantou a
realidade editorial concreta: “De um total de 110 obras, 69 são de
27 autores do século 19, e 36 de 17 autores do século 19. Apenas
cinco obras dos séculos 17 e 18”, clara indicação, acrescenta ele,
da “preferência do leitor brasileiro pelos autores do século 19”.
Esse período bem pode ser o ponto mais alto da influência francesa,
parte pelo prolongamento inercial da fase anterior, refletindo, por
um lado, as idéias feitas e, por outro, a atmosfera de simpatia
coletiva instituída por uma guerra em que a França entrara como
perdedora. Claro, é de ser também levada em conta a limitação da
fonte consultada. A sabedoria retrospectiva permite pensar que se
iniciava então, obscuramente, o processo do declínio francês, de que
tanto se fala em nossos dias, inclusive na França.
As relações culturais entre os dois países, podemos concluir com
Marieta de Moraes Ferreira, têm longa tradição, manifestando-se de
maneira consistente desde o início do século 19 por intermédio de
missões científicas e universitárias, de escolas religiosas e da
Aliança Francesa, criada em 1896 (“Os professores franceses e a
redescoberta do Brasil”). Dessas missões, a mais prestigiosa foi a
que deu alto gabarito ao ensino universitário paulista a partir de
1934, não sendo de esquecer, em outro nível, os colégios religiosos.
Um irreverente observou que as mulheres exerceram enorme papel na
difusão da língua francesa, tanto as freiras do Sion quanto as
garotas do Alcazar Lyrique e estabelecimentos congêneres.
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