Wilson Martins
Discursos acadêmicos (III)
05.11.2005
Em 1635, Richelieu instituiu a Academia Francesa como órgão do
Estado não para estimular, mas, antes, para controlar as atividades
sempre imprevisíveis dos intelectuais. A nossa, de seu lado, foi
criada deliberadamente à margem do Estado, num momento de incertezas
políticas e sociais, quando o federalismo, preconizado por Rui
Barbosa para salvar a monarquia, estava pondo em perigo a República
e a unidade nacional. É nesse contexto que se devem entender as
palavras de Machado de Assis na sessão inaugural: “o vosso desejo é
conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal
obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente
a vossa constância”.
Mestre das lítotes, ele propunha o tema que Joaquim Nabuco iria
desenvolver explicitamente: “Na Academia estamos certos de não
encontrar a política. Eu sei bem que a política, ou, tomando-a em
sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de todas as
grandes obras (...). Nós não pretendemos matar no literato, no
artista, o patriota, porque sem a pátria, sem a nação, não há
escritor, e com ela há forçosamente o político”. Palavras cujo
sentido profundo, aludindo às circunstâncias do momento, foi
revelado por Graça Aranha, anos mais tarde, num livro clássico
sobre, justamente, Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Em 1895, dizia
ele, os espíritos estavam fatigados das política: “Os homens feitos,
desiludidos, os homens novos, enjoados. Deu-se um nefasto
absenteísmo da inteligência e da cultura na política brasileira e as
letras apresentavam-se como o único refúgio ao talento. A Revista
Brasileira teve o dom da tolerância e da concórdia. Nas suas páginas
e nas suas salas uma verdadeira confraternidade espiritual entre os
homens mais divergentes floresceu docemente. Era um encanto
encontrarem-se ali monarquistas militantes como o Barão de Loreto,
Taunay, Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, republicanos destemidos como
Lúcio de Mendonça, socialistas como o dono da casa (José Veríssimo),
anarquistas como o que foi por algum tempo sectário de Kropotkine e
Elysée Réclus. A política não turbava aquele remanso literário. O
que interessava era a literatura”.
Já na primeira década republicana (para lembrar um título célebre),
muitos passaram a repetir que aquela não era a República dos seus
sonhos, o que, bem entendido, estava na ordem natural das coisas: a
geração dos revolucionários de 89 (o nosso ... ) não sabia o que
fazer com a República, enquanto os últimos remanescentes da
monarquia só mantinham suas convicções por teimosia e despeito, para
salvar a face. Os fundadores empenharam-se deliberadamente em
perpetuar na Academia o ambiente e as regras de comportamento da
Revista Brasileira : “Eu confio que sentiremos todo o prazer em
discordar”, afirmava Joaquim Nabuco – “essa desinteligência
essencial é a condição de nossa utilidade, o que nos preservará da
uniformidade acadêmica”.
Os discursos acadêmicos propõem, tudo bem considerado, um quadro
estimulante da inteligência brasileira – Olavo Bilac recebendo
Afonso Arinos; Sílvio Romero recebendo Euclides da Cunha; Coelho
Neto recebendo João do Rio, o mesmo Coelho Neto que recebeu Osório
Duque-Estrada, pronunciando, nos dois casos, como seria de esperar,
peças oratórias em que a retórica predominou sobre a substância
analítica; mas também Carlos Magalhães de Azeredo recebendo Amadeu
Amaral ou Pedro Lessa na recepção de Alfredo Pujol. É certo que
houve episódios deploráveis como o discurso em que um lamuriento e
reivindicativo Emílio de Menezes esqueceu que era homem de espírito,
preparando para a posse o texto que os arquivos implacáveis
conservaram para nosso constrangimento: “Faço do momento, que tão
propício se me depara, um acantábulo para arrancar espinhos que de
há muito me pungem. (...) Quando começou a haver uma quase certeza
da minha eleição, os inimigos rancorosos, muitos dos quais só o são
por coisas cuja paternidade me foi emprestada, redobraram de
esforços demolidores. Boêmio e desregrado .... boêmio e desregrado
(...)”. Emílio de Menezes, ou o engraçado que encontrou na eleição
acadêmica a tragédia de sua vida.
No período coberto por este volume, a Academia elegeu Osório
Duque-Estrada personalidade que nas duas décadas do século 20 foi
representante ao mesmo tempo paradigmático e ridicularizado da
crítica literária, aquele em que se encarnou a idéia caricatural da
profissão, o que não o impediu de ser eleito como sucessor de Sílvio
Romero. Era, na verdade, um substituto que encarou o Mestre sem
lisonja: “foi o morto venerável quem dirigiu e guiou os meus
primeiros passos na carreira das letras (...). Acresce que não cabe
aqui o que a crítica ainda não fez lá fora (...). A verdade é que
não sou nem nunca tive, sequer, a veleidade ou a preocupação de ser
crítico. Pelo que haja feito e pela influência que porventura tenha
logrado exercer na repressão do contrabando literário em nossa
terra, nos últimos dez anos, limito-me a aceitar, mui modesta e
gostosamente, o único título que com razão e justiça já certa vez me
foi pinturescamente conferido por um dos mais afiados escritores da
nova geração: o de guarda-noturno da literatura brasileira”.
Dizendo isso, ele demonstrou ser homem de espírito, não o energúmeno
em que geralmente o representam, o que, claro está, não aumenta,
crítica ou literariamente, o valor de sua obra. Mas, como o diabo
faz das suas, ele se imortalizou como autor da letra do Hino
Nacional, vencedor em concurso público. Ser sucessor de Sílvio
Romero não o constrangeu para criticar-lhe de maneiras: “cultivo
assíduo de chascos e avanias, entremeadas de remoques e dictérios de
pouco peso e decoro (...)”. Tudo isso o excluía definitivamente da
“nobre raça dos Sainte-Beuve, dos Brunetiére, dos Taine e dos Renan
(...).”
Sucedendo a Machado de Assis na cadeira que tem José de Alencar por
patrono, Lafayette não tomou posse de Alfredo Pujol. É impossível
imaginar mais feliz conjunção de grandes intelectuais, espécie de
cerimônia simbólica em honra de quem, a essa altura, já era visto
como a encarnação onomástica da Academia: Pujol escrevera o
“primeiro grande livro”, dizia Pedro Lessa, “verdadeiro e imparcial,
acerca da personalidade e da obra de Machado de Assis”. Livro,
podemos acrescentar, jamais superado pelos que se seguiram na
incontável bibliografia machadiana.
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