Wilson Martins
Questão de perspectiva
12.11.2005
Tudo bem
considerado, é positivo o balanço da participação feminina nas
letras e na vida literária: “A experiência social, cultural e
sobretudo intelectual das mulheres [...] constituiu-se num percurso
simultâneo de lutas e conquistas, de muitos impedimentos, mas também
de realizações” (Maria de Lourdes Eleutério. Vidas de romance: as
mulheres e o exercício de ler e escrever no entre-séculos 1890-1930.
Rio: Topbooks, 2005). A “experiência da amizade”, em famílias
importantes e amigos influentes, criou o círculo de mútuo
encorajamento “no qual a literatura integra e credencia negócios na
área da cultura e da educação. São colégios, jornais, revistas,
editoras”. Com isso, a mulher “usufrui do meio para sua própria
formação intelectual e passa a formar o público leitor”.
Exatamente como
entre os homens, conclusão que em grande parte desautoriza e corrige
a visão polêmica da autora ao longo do volume. Acresce que a
literatura não se compõe de obras isoladas, mas de um quadro de
valores no qual, é óbvio, o requisito da qualidade é imperativo para
o estabelecimento das hierarquias: qualidade não é critério
autônomo, mas comparativo, rejeitado pela autora no ponto de
partida. Escritores de ambos os sexos podem ter eventualmente
publicado obras estimáveis nelas mesmas, sem superar a média de
qualidade do momento, menos ainda o gabarito estabelecido pelas
anteriores. É o que acontece, diga-se desde logo, com a maior parte
das autoras aqui selecionadas, de Evangelina Lima Barreto e Lola de
Oliveira, passando por Josefina Álvares de Azevedo e Narcisa Amália.
Foram escolhidas por serem mulheres, não por seus possíveis méritos
excepcionais: “o que menos nos importou foi a qualidade literária do
que produziram as mulheres intelectuais aqui estudadas, cuja
escritura, se não é significativa [sic], é um expressivo objeto de
estudo para a investigação sociológica”.
Investigação
sociológica, não história literária, a própria natureza do trabalho
aconselharia à autora que se mantivesse no plano da pura
objetividade científica e factual, sem se entregar a repetidas
acusações do regime discriminatório instituído pelos homens contra
as mulheres nos costumes literários. Situações corriqueiras, comuns
aos dois sexos, são destacadas como evidências do imperialismo
masculino: “É importante que se registre que a maior parte da sua
produção chegou até nós através de sua própria iniciativa. Foram
elas de fato que remeteram seus livros a bibliotecas como a Nacional
do Rio de Janeiro e a amigos influentes [...]” – exatamente como
faziam e continuam fazendo os confrades masculinos.
O que
particularmente interessou à autora foi “a reflexão sobre como a
mulher é apresentada à mulher, isto é, como a identidade feminina é
realizada pelo próprio discurso sobre a mulher, seja ele em prosa,
em versos, em ensaios ou mesmo em biografias históricas”. Mas, como
ficou dito, a visão de conjunto é tendenciosa, procurando enquadrar
desde as páginas iniciais as presumíveis reações do leitor: “As
instâncias de consagração e de glória constituem a meta quase que
inatingível para muitas delas”, o que também ocorre com os homens, é
necessário repetir. Assim, “o empenho para obter uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras, por exemplo, aparece freqüentemente
como desejo de realização”.
Muitos escritores
conheceram e continuam conhecendo tais frustrações, de forma que, no
conjunto, especificando para as mulheres o que são apenas as
contingências da vida literária, a autora infringiu o primeiro
requisito das definições, que é conter todo o definido e nada mais
do que ele. Isso não significa, nem de longe, que não houvesse e
continuem a haver preconceitos machistas, na literatura e na vida,
como se verificou durante muitos anos nas candidaturas acadêmicas.
O episódio mais
ilustrativo ocorreu quando Amélia de Freitas Beviláqua apresentou-se
para a vaga de Alfredo Pujol: “Não havia precedentes para o caso, e
os acadêmicos se reuniram para considerar a questão. Mas para
aceitá-la como concorrente seriam necessárias mudanças regimentais
que eram inexeqüíveis – ou que inexeqüíveis pareceram porque os
veneráveis acadêmicos, apegando-se a jurisdicismos literais,
demonstraram ignorar a sintaxe da língua portuguesa. Maria de
Lourdes Eleutério não se refere aos argumentos apresentados pelos
que se opunham: como os estatutos determinavam que os postulantes
deviam ser “escritores brasileiros”, a maioria entendeu que, sendo
mulher, ela não se incluía entre os escritores brasileiros... É
difícil de acreditar, mas aconteceu.
O incidente
contraria a tese de Maria de Lourdes Eleutério segundo a qual as
escritoras sempre se beneficiaram do prestígio e influência de pais
e maridos: no caso, nada lhe valeram os de Clóvis Beviláqua, já
então membro do ilustre sodalício. Ele argumentou que “tal
interpretação [...] desconsiderava a inteligência da mulher [...].
Em solidariedade com Amélia, nunca mais participou das reuniões
acadêmicas. Ele voltaria ao assunto em Academia Brasileira de Letras
e Amélia de Freitas Beviláqua: documentos históricos e literários” –
contestação de edificante leitura, geralmente ignorada nas histórias
da Academia.
Esses mesmos
acadêmicos mostraram-se, entretanto, bem mais flexíveis ao
elegerem... Filinto de Almeida, português naturalizado, em lugar de
sua esposa Júlia Lopes de Almeida, que, sendo mulher, embora grande
escritora, não poderia ser admitida: “Reconhecida como legítima
representante da elite literária brasileira, Júlia, como era de se
esperar, opinou sobre a fundação da Academia, mas, como mulher, não
pôde nela ingressar”. O intrigante Humberto de Campos registrou o
que então se dizia: “Como D. Júlia não pôde entrar, dá-se-lhe uma
satisfação, incluindo o Filinto”.
Discriminadas
quanto fossem (ou quanto Maria de Lourdes Eleutério as imagina),
jamais faltaram estímulos e aplausos às boas escritoras (e às menos
boas), além da acolhida em revistas e jornais de prestígio. Zalina [Rolim],
entre outras, “desde os 20 anos colaborava para os jornais Correio
Paulistano, A Província de São Paulo, A Cidade de Itu ... Vicente de
Carvalho, à época considerado o maior poeta paulista, era
regularmente lembrado para prefaciar obras de escritoras ... a
Amélia de Freitas Beviláqua não faltou o estímulo do então influente
Araripe Júnior ...” – e assim por diante.
Toda essa
história é menos tenebrosa do que a apresentam as militantes de um
feminismo mal informado.
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