Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Poeta católico


13.12.2003

A marginalidade de Tasso da Silveira (1895-1968) em nossa vida literária tem aspectos curiosos (“Poemas”. Org. e sel. Ildásio Tavares. São Paulo/Rio: GRD/ABL, 2003). Por um lado, foi sobrevivente algo anacrônico do Simbolismo em plena era modernista — mas de um simbolismo que, a essa altura, estava fortemente impregnado de Parnasianismo, como sempre esteve, pelo menos no que se refere às técnicas de versificação (sob esse aspecto, Cruz e Sousa é poeta parnasiano, Andrade Muricy dixit ) — mas um parnaso que se desfazia, ele próprio, juntamente com o Simbolismo, no que se convencionou chamar de Penumbrismo.

Era, nas duas primeiras décadas do século XX, um falso simbolismo, ou, se quisermos, um simbolismo da vida quotidiana, por oposição aos castelos e princesas dos ortodoxos: basta lembrar que Manuel Bandeira começou como penumbrista e só chegou, de fato, ao Modernismo em 1930. Era uma capela que resistiu quanto pôde às investidas heréticas de São Paulo, processo, aliás, vitorioso a longo prazo na exata medida em que acompanhava os desgastes naturais de uma vanguarda amadurecida e transformada em “moderno”, o que aconteceu na década de 1930.

Mas, sendo marginal das grandes correntes dos anos de 1920 e 1930, Tasso da Silveira viu-se incorporado como figura marcante no centro da reação católica, naqueles dias mais combativa e reivindicativa do que nunca (Jackson de Figueiredo, Tristão de Athayde). Foram os anos da vitoriosa influência “espiritualista” na Constituinte de 1934 com a constituição igualmente reacionária que se dissimulava sob etiquetas progressistas, como a representação classista no Parlamento. Foram, também, os anos da revista “Festa”, expressa e deliberadamente criada para combater os modernistas de São Paulo, às vezes com grosseria e truculência como no livro do mesmo Tasso da Silveira, “Definição do Modernismo brasileiro” (1932).

Ser “poeta católico” era uma etiqueta prestigiosa, como em Jorge de Lima e Murilo Mendes, que propunham a “restauração da poesia em Cristo”, paralela ao fenômeno ao mesmo tempo religioso, social e político dos chamados “jovens monges”, sobre o qual Antônio Carlos Villaça pode contar alguma coisa, tudo, bem entendido, sob o signo do antimodernismo, porque a modernidade e o que poderia implicar era, desde os finais do século XIX, palavra anatemática na doutrina oficial da Igreja.

Nesse quadro, Tasso da Silveira foi figura paradigmática e prestigiosa, entre os que perdiam prestígio e centralidade ao ritmo em que se desfazia o movimento de idéias que representavam, porque esses foram também os anos da avançada socialista, encarnada nos comunistas, cuja revolta, como se sabe, ocorreu em 1935, e pelo então vigoroso “romance nordestino”, cujo programa esquerdista e revolucionário assegurou-lhe, mais do que qualquer outra coisa, a extraordinária popularidade. No Brasil como no resto do mundo (no Brasil por causa do resto do mundo), a década de 1930 foi a década das ideologias contraditórias, cuja resolução viria em 1939, com a derrota a longo prazo do esquerdismo radical e do radicalismo direitista: algo da esquerda acabou passando para a direita e vice-versa, tanto em política quanto no imaginário da literatura.

No que se refere a Tasso da Silveira, sua “cosmovisão” como a denomina Leodegário de Azevedo nas páginas iniciais, “é sempre uniforme, no sentido de que o sentimento de Deus, que é o próprio sentimento do absoluto e do eterno, unifica toda a sua obra poética. Assim, a unidade superior que decorre do próprio sentimento do Absoluto, exprime-se numa temática de cunho psicológico, não raro angustiada, pelo conflito entre o efêmero da vida e o fluir ininterrupto do tempo no seio da eternidade”.

De fato, Absoluto, Deus, Eternidade, Espírito, todas com as maiúsculas de estilo, eram palavras sacramentais na crítica de inspiração católica, exprimindo certezas cuja verdade só convencia os convencidos. São contextos em que a “literatura” será sempre depreciada como intrinsecamente fútil, definindo-se pela frívola efemeridade e mundanismo pecaminoso. Entre os doutrinários dessa tendência há, contudo, uma “literatura” superior às letras leigas e profanas, praticada, essa, com subentendidos piedosos pela corrente que Leodegário de Azevedo denomina de “totalista”: “Sua obra (...) reveste-se de sentido brasileiro e universal, pelo amor às nossas tradições e pelo canto puro do homem em face do mistério divino”.

“Nossas tradições” é expressão de código para designar o catolicismo, de forma que, em tudo isso, não surpreende que Tasso da Silveira se ligasse a Plínio Salgado e ao integralismo (que era a corrente oficiosa da Igreja brasileira), com óbvias simpatias pelo fascismo italiano, visto como grande e inexpugnável fortaleza contra o “comunismo ateu”. Pode-se lamentar que a matéria tenha sido geralmente tratada no plano polêmico e partidário, sem a indispensável objetividade que requer, mais do que qualquer outra. Nesse capítulo, cabe lembrar o livro “Alegoria do homem novo”, publicado por Tasso da Silveira em 1926, em cujo título é impossível não perceber o eco do que Georges Valois publicara em 1906 (“L’homme qui vient”) e que, reaparecendo em 1927 na coleção Renaissance Française, tornou-se o evangelho da extrema direita encarnada na Action Française, na qual se inscreveu o antigo anarquista, fundador do Faisceau (feixe, fascio em italiano), acontecimentos todos que os brasileiros “espiritualistas” não poderiam ignorar.

Valois afirmava que as idéias democráticas só continuavam a reinar em países atrasados: “é evidente desde já que o século XX será o século da autoridade”. Era no que se acreditava pelo mundo afora entre direitistas e esquerdistas (todos totalitários), com a mesma fé inquebrantável no milênio que se aproximava. O “homem que vinha” era, no Brasil, “O Esperado” (1931), de Plínio Salgado, e certamente, o “homem novo” também anunciado por Tasso da Silveira. Todos eles combatiam, nas palavras de Georges Valois, os “três grandes impostores”: Rousseau, “o falso Homem da Natureza”, Kant, “o falso Homem do Dever” e Karl Marx, “o falso Homem da Necessidade”. Reconhecem-se nisso as idéias e o estilo dogmático de Jackson de Figueiredo, mestre de pensamento de toda essa geração.

 

 

 

 

 

 

02/01/2006