Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

História paulista


28.02.2004

Como e quando se constituiu o complexo urbano que é a cidade de São Paulo? O “como”, temática peripecial e descritiva, é mais fácil de resolver que o “quando”, questão mental de ontologia interpretativa. O “como” pertence ao domínio dos fatos, efêmeros e isolados por natureza; o “quando” pertence ao domínio dos fatos históricos, isto é, aquela parte dos primeiros que adquiriram sentido por suas relações de causa a efeito com fatos posteriores. Em outras palavras, nem todos os fatos são fatos históricos, estes últimos sendo os que, de uma forma ou de outra, determinaram o que intelectualmente construímos como sucessão orgânica dos acontecimentos.

Tais as indagações preliminares e metodológicas implicitamente propostas por Roberto Pompeu de Toledo em livro modelar de pesquisa factual e irretocável domínio da matéria (“A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900”. Rio: Objetiva, 2003). É uma demonstração por assim dizer didática desses pontos de vista. Assim, as lutas sangrentas entre Pires e Camargos, o episódio pitoresco da cama de Gonçalo Pires ou a insensata aclamação de Amador Bueno (com a sensata recusa do homenageado), foram fatos (a que o autor dedica centenas de páginas), mas não fatos históricos, pois nenhuma influência exerceram no desenvolvimento subseqüente. Em contrapartida, o bandeirismo é um fato histórico, mas não da história paulista, apesar do ufanismo local, tanto assim que houve expedições de natureza idêntica em diversos pontos do território, com os mesmos propósitos e conseqüências. O bandeirismo é fato histórico, sem dúvida, mas da História do Brasil, determinando a conquista e povoamento do que seria a configuração final da nação brasileira.

O “quando” predefine a transformação do fato em fato histórico, sendo, por isso, necessário fixar-lhe o momento com o maior rigor, um rigor de exigências jansenistas, por oposição ao laxismo jesuítico (para lembrar a profunda polarização religiosa da época), momento, no século XVII, em que a nebulosa do “quando” paulista começa a se condensar. Mas, era ainda uma indistinta nebulosidade: “A administração, nos tempos coloniais, era confusa, e as competências incertas. O que parece claro num texto torna-se obscuro em outro. O que ressalta de um episódio será desmentido pelo seguinte. (...) ‘A administração colonial nada ou muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas administrações contemporâneas’”.

Pode-se pensar que o “quando” identificador coincide com a elevação da cidade à cabeça da capitania: “Ocorre porém que, ao contrário do que apregoaram antigos cronistas, como Pedro Taques de Almeida Pais Leme e frei Gaspar da Madre de Deus, e, com base neles, muitos dos autores posteriores, São Paulo não se tornou cabeça da capitania em 1683. Afonso d’Escragnolle Taunay (...) não só mostrou que o governador-geral desautorizou a provisão do marquês de Cascais, como também transcreveu documentos posteriores que continuaram tratando São Vicente e não São Paulo, como capital. A própria Câmara de São Paulo, num documento de 1685, abria mão da pretensão de tornar-se cabeça da capitania (...)”.

Mas, “se São Paulo não se tornou capital em 1683, quando foi então que isso aconteceu? Taunay não encontrou, na documentação disponível, resposta cabal à questão. Cautelosamente, ele escreve que ‘quer nos parecer, salvo melhor juízo’, que foi em 1709” — boa aposta, escreve Roberto Pompeu de Toledo. “Aposta” que, assinalando um fato histórico, mostra que as páginas anteriores referem-se apenas a fatos, sem ligações orgânicas com a cidade. São Paulo é uma realidade do século XVIII, diferenciando-se de todas as outras cidades brasileiras, nomeadamente a partir das décadas de 1860-70: “Estamos diante de um cenário de enorme alcance. Pela primeira vez na história, e em meio a um veloz processo de modernização, São Paulo, a província, articulava-se num todo — econômica, física e politicamente. Articulava-se economicamente em torno do café, fisicamente ao longo dos trilhos das estradas de ferro e politicamente por interesses comuns que multiplicaram a influência de sua elite, no contexto do Império”.

Esse é o capítulo central do livro (“O general Caxias e o general café”), o “quando” pivotal e decisivo de todo o processo, já sem nenhuma relação, nem mesmo de longe, com as comunidades rurais dos tempos primitivos, nem mesmo com a cidade de 6.920 habitantes que Pedro I conheceu na viagem que foi, entre todas, a mais carregada de história. A diferença entre as duas qualidades de fatos revela-se, no caso, pelo paradoxo mencionado por Roberto Pompeu de Toledo: “Aquela que viria a ser considerada a mais européia das cidades brasileiras, na primeira metade do século XX, e a mais cosmopolita, na segunda, foi, nos primeiros tempos, a mais brasileira de todas”.

O verdadeiro paradoxo está em que os imigrantes foram poderosos fator de paulistização, se essa for a palavra exata, processo dialético em que os estrangeiros se abrasileiravam e os brasileiros se internacionalizavam. Dois fatores, segundo Roberto Pompeu de Toledo, concorreram para isso: “O primeiro é que, no processo de crescimento e enriquecimento da cidade, ampliou-se a demanda por um sem-número de atividades para as quais os estrangeiros estavam mais preparados do que os nacionais. (...) Outro fator, mais importante ainda, da fixação de estrangeiros na capital da província foi que, de cambulhada com o café e a estrada de ferro, outro fenômeno começa a despontar na cidade — a industrialização”.

Todo o resto veio por acréscimo na dinâmica dos componentes que reagiam entre si cataliticamente, inclusive na rancorosa resistência depreciativa dos famosos “paulistas de quatrocentos anos”, que já não se reconheciam nos paulistas de 20 ou 30. É a história contada por Jorge Andrade numa peça de teatro, ao mesmo tempo pungente e cruelmente satírica: “Os ossos do barão”, velho tema clássico dos imigrante que redouravam os brasões das antigas famílias decadentes e arruinadas, criando o novo patriciado do dinheiro.

Link para Roberto Pompeu de Toledo

 

 

 

 

 

02/01/2006