Como e quando se constituiu o complexo
urbano que é a cidade de São Paulo? O “como”, temática peripecial e
descritiva, é mais fácil de resolver que o “quando”, questão mental
de ontologia interpretativa. O “como” pertence ao domínio dos fatos,
efêmeros e isolados por natureza; o “quando” pertence ao domínio dos
fatos históricos, isto é, aquela parte dos primeiros que adquiriram
sentido por suas relações de causa a efeito com fatos posteriores.
Em outras palavras, nem todos os fatos são fatos históricos, estes
últimos sendo os que, de uma forma ou de outra, determinaram o que
intelectualmente construímos como sucessão orgânica dos
acontecimentos.
Tais as indagações preliminares e
metodológicas implicitamente propostas por Roberto Pompeu de Toledo
em livro modelar de pesquisa factual e irretocável domínio da
matéria (“A capital da solidão: uma história de São Paulo das
origens a 1900”. Rio: Objetiva, 2003). É uma demonstração por assim
dizer didática desses pontos de vista. Assim, as lutas sangrentas
entre Pires e Camargos, o episódio pitoresco da cama de Gonçalo
Pires ou a insensata aclamação de Amador Bueno (com a sensata recusa
do homenageado), foram fatos (a que o autor dedica centenas de
páginas), mas não fatos históricos, pois nenhuma influência
exerceram no desenvolvimento subseqüente. Em contrapartida, o
bandeirismo é um fato histórico, mas não da história paulista,
apesar do ufanismo local, tanto assim que houve expedições de
natureza idêntica em diversos pontos do território, com os mesmos
propósitos e conseqüências. O bandeirismo é fato histórico, sem
dúvida, mas da História do Brasil, determinando a conquista e
povoamento do que seria a configuração final da nação brasileira.
O “quando” predefine a transformação
do fato em fato histórico, sendo, por isso, necessário fixar-lhe o
momento com o maior rigor, um rigor de exigências jansenistas, por
oposição ao laxismo jesuítico (para lembrar a profunda polarização
religiosa da época), momento, no século XVII, em que a nebulosa do
“quando” paulista começa a se condensar. Mas, era ainda uma
indistinta nebulosidade: “A administração, nos tempos coloniais, era
confusa, e as competências incertas. O que parece claro num texto
torna-se obscuro em outro. O que ressalta de um episódio será
desmentido pelo seguinte. (...) ‘A administração colonial nada ou
muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria que estamos
hoje habituados a ver nas administrações contemporâneas’”.
Pode-se pensar que o “quando”
identificador coincide com a elevação da cidade à cabeça da
capitania: “Ocorre porém que, ao contrário do que apregoaram antigos
cronistas, como Pedro Taques de Almeida Pais Leme e frei Gaspar da
Madre de Deus, e, com base neles, muitos dos autores posteriores,
São Paulo não se tornou cabeça da capitania em 1683. Afonso d’Escragnolle
Taunay (...) não só mostrou que o governador-geral desautorizou a
provisão do marquês de Cascais, como também transcreveu documentos
posteriores que continuaram tratando São Vicente e não São Paulo,
como capital. A própria Câmara de São Paulo, num documento de 1685,
abria mão da pretensão de tornar-se cabeça da capitania (...)”.
Mas, “se São Paulo não se tornou
capital em 1683, quando foi então que isso aconteceu? Taunay não
encontrou, na documentação disponível, resposta cabal à questão.
Cautelosamente, ele escreve que ‘quer nos parecer, salvo melhor
juízo’, que foi em 1709” — boa aposta, escreve Roberto Pompeu de
Toledo. “Aposta” que, assinalando um fato histórico, mostra que as
páginas anteriores referem-se apenas a fatos, sem ligações orgânicas
com a cidade. São Paulo é uma realidade do século XVIII,
diferenciando-se de todas as outras cidades brasileiras,
nomeadamente a partir das décadas de 1860-70: “Estamos diante de um
cenário de enorme alcance. Pela primeira vez na história, e em meio
a um veloz processo de modernização, São Paulo, a província,
articulava-se num todo — econômica, física e politicamente.
Articulava-se economicamente em torno do café, fisicamente ao longo
dos trilhos das estradas de ferro e politicamente por interesses
comuns que multiplicaram a influência de sua elite, no contexto do
Império”.
Esse é o capítulo central do livro (“O
general Caxias e o general café”), o “quando” pivotal e decisivo de
todo o processo, já sem nenhuma relação, nem mesmo de longe, com as
comunidades rurais dos tempos primitivos, nem mesmo com a cidade de
6.920 habitantes que Pedro I conheceu na viagem que foi, entre
todas, a mais carregada de história. A diferença entre as duas
qualidades de fatos revela-se, no caso, pelo paradoxo mencionado por
Roberto Pompeu de Toledo: “Aquela que viria a ser considerada a mais
européia das cidades brasileiras, na primeira metade do século XX, e
a mais cosmopolita, na segunda, foi, nos primeiros tempos, a mais
brasileira de todas”.
O verdadeiro paradoxo está em que os
imigrantes foram poderosos fator de paulistização, se essa for a
palavra exata, processo dialético em que os estrangeiros se
abrasileiravam e os brasileiros se internacionalizavam. Dois
fatores, segundo Roberto Pompeu de Toledo, concorreram para isso: “O
primeiro é que, no processo de crescimento e enriquecimento da
cidade, ampliou-se a demanda por um sem-número de atividades para as
quais os estrangeiros estavam mais preparados do que os nacionais.
(...) Outro fator, mais importante ainda, da fixação de estrangeiros
na capital da província foi que, de cambulhada com o café e a
estrada de ferro, outro fenômeno começa a despontar na cidade — a
industrialização”.
Todo o resto veio por acréscimo na
dinâmica dos componentes que reagiam entre si cataliticamente,
inclusive na rancorosa resistência depreciativa dos famosos
“paulistas de quatrocentos anos”, que já não se reconheciam nos
paulistas de 20 ou 30. É a história contada por Jorge Andrade numa
peça de teatro, ao mesmo tempo pungente e cruelmente satírica: “Os
ossos do barão”, velho tema clássico dos imigrante que redouravam os
brasões das antigas famílias decadentes e arruinadas, criando o novo
patriciado do dinheiro. |