Foi chamado de “missão francesa” o
primeiro grupo de professores contratados para inaugurar, em São
Paulo, os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
criada em 1934. Houve, também, a “missão italiana”, uma e outra
designadas em caráter oficial pelos governos dos respectivos países.
Todos encaravam implicitamente o Brasil como “terra de missão”, no
sentido apostólico do termo, sendo recebidos e aqui permanecendo
pelo que efetivamente eram, quero dizer, heróis civilizadores.
Muitos portugueses vieram ao mesmo tempo e como idênticos
propósitos, não só professores, como Fidelino de Figueiredo, mas
também cientistas, intelectuais e políticos, jornalistas e
filósofos, constituindo uma comunidade de características próprias:
“Missão de tipo especial, não apenas por não ser formada por grupos
definidos nem ter existido oficialmente, mas porque atuou dentro do
universo da mesma língua” (Fernando Lemos/ Rui Moreira Leite, orgs.
“A missão portuguesa: rotas entrecruzadas”. São Paulo/Bauru: Unesp/Edusc,
2003).
Esse volume, esclarecem os
organizadores, “surgiu como desdobramento natural da mostra
organizada para acompanhar o Congresso Internacional Sinais de Jorge
de Sena, realizado em Araraquara, em continuidade ao Colóquio
Internacional “Jorge de Sena e outros escritores num Brasil
recente”, realizado no Rio de Janeiro, completados 20 anos da morte
do poeta, em 1998”. Se franceses e italianos partiram para uma
“terra de missão”, os portugueses chegaram a uma terra de exílio,
porque a maior parte, se não todos eles, era constituída de
opositores ao regime político de sua pátria, definindo-se, antes de
mais nada, como refugiados em busca de uma posição duradoura, se não
permanente, em nosso país.
Foi o caso das figuras estelares de
Fidelino de Figueiredo, Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro,
estes últimos aproveitando a oportunidade de congressos
internacionais para aqui permanecer. Nessa condição e no plano
biográfico, repetiram, sem querer, o destino clássico de “vencidos
da vida”, segundo a conhecida fórmula de Eça de Queiroz: “Para um
homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade
aparente a que chegou — mas do ideal íntimo a que aspirava”. Não é
arbitrária a evocação de Eça de Queiroz a respeito daqueles
intelectuais, pois Eça é, com certeza, a pedra de toque da
literatura portuguesa e seu pensamento crítico. Cada um deles pode
ser triangulado pelo espaço que lhe reservam nos respectivos
universos mentais.
Se Jorge de Sena e Adolfo Casais
Monteiro singularizam-se por uma atitude de depreciativa indiferença
no que se refere a Eça de Queiroz (salvo dois pequenos trabalhos
juvenis de Casais Monteiro), — situando-se, por temperamento e
ideologia no pólo exatamente oposto — Fidelino de Figueiredo, em
quem Oliveira Lima via um “formoso espírito de erudito moderno”,
procurou avaliar-lhe a “presença” em livro de 1933 sugestivamente
intitulado “Depois de Eça de Queiroz”... A verdade é que, depois de
Eça de Queiroz, a literatura portuguesa pareceu reduzida à condição
dos portugueses que, segundo Fernando Pessoa, tendo descoberto o
caminho marítimo das Índias, ficaram sem trabalho.
Contudo, a essa altura, as coisas se
estavam sub-repticiamente organizando. Com a fundação da Faculdade
de São Paulo, em 1934, para onde viriam tantos intelectuais
portugueses, Portugal descobre Fernando Pessoa, no mesmo ano, ao
aparecimento de “Mensagem”, seu único livro publicado em vida. No
ano seguinte, com a legendária carta sobre os heterônimos, seu nome
ficaria para sempre ligado ao de Adolfo Casais Monteiro, que lhe
publica os dois volumes de “Poesia”, em 1945, com a introdução que
ficou célebre. Assim, depois de Eça de Queiroz, veio Fernando
Pessoa, destinado a tomar-lhe o lugar no interesse crítico alguns
anos depois.
Para Jorge de Sena, entretanto, o
“contemporâneo capital” não seria Fernando Pessoa, muito menos Eça
de Queiroz, mas Luís de Camões, recuperado numa série de estudos
fundamentais. A todos eles Eça de Queiroz opunha-se por implicação
como outra realidade literária, que podemos identificar com o
fradiquismo, ao acaso do livro de Ana Nascimento Piedade, trabalho
exemplar de inteligência exegética e sólida pesquisa intelectual (“Fradiquismo
e modernidade no último Eça”. 1889-1900. Prefácio de Isabel Pires de
Lima. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003).
Sua tese central é o encontro do
modernismo de Eça-Fradique com o de Fernando Pessoa, idéia que
Casais Monteiro teria recebido com hostilidade, sendo, como era,
completamente alheio ao humor e à ironia. A modernidade Eça-Fradique
seria aponte de comunicação, se não de afinidade, com o modernismo
de Fernando Pessoa. Claro, acentua ela, “a identidade e o estatuto
estético-literário de Fradique Mendes decorrem de uma ‘tática de
pseudonímia’ e não de uma estratégia de heteronímia”. O “primeiro
Eça” ter-se-ia antecipado ao sensacionismo, “conceito central da
estética modernista portuguesa, ou seja, Fernando Pessoa. [...]
Assim a recriação modernista pode — e deve — ser confrontada com
procedimentos estético-literários deste primeiro Eça, que,
curiosamente, é aquele que mais se relaciona com o último Eça”.
A condição de exilados criou para
Casais Monteiro e Jorge de Sena a ambígua situação de ausentes ou
marginais da literatura portuguesa viva, simétrica à sua inevitável
marginalidade na literatura brasileira: por mais que escrevessem
sobre ela, por mais que se integrassem no país, eram portugueses, a
qualidade de “escritor português” tendo sido expressamente
reivindicada por Jorge de Sena até a fim da vida, assim como passou
boa parte dela reclamando o lugar de grande importância que era o
seu e que só postumamente lhe foi reconhecido. Quanto a Casais
Monteiro, transferiu para o Brasil as atitudes agressivas da
juventude, para nada dizer da irritação que lhe causava o suposto
“nacionalismo” dos brasileiros.
É preciso reconhecer que “temos traços
próprios”, escreve Antônio Candido na prefácio, “e o velho Brasil
luso-brasileiro deixou de existir como dimensão única, ante a
profunda mistura racial e cultural devida às imigrações”. Resta o
“substrato unificador poderoso formado pela língua”; em suma, “no
Brasil, os portugueses são estrangeiros de tipo especial”, realidade
que devemos aceitar, acrescento eu, para além das bem intencionadas
“comunidades políticas” e das mal inspiradas reformas ortográficas. |