Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Rotas entrecruzadas


24.01.2004

Foi chamado de “missão francesa” o primeiro grupo de professores contratados para inaugurar, em São Paulo, os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada em 1934. Houve, também, a “missão italiana”, uma e outra designadas em caráter oficial pelos governos dos respectivos países. Todos encaravam implicitamente o Brasil como “terra de missão”, no sentido apostólico do termo, sendo recebidos e aqui permanecendo pelo que efetivamente eram, quero dizer, heróis civilizadores. Muitos portugueses vieram ao mesmo tempo e como idênticos propósitos, não só professores, como Fidelino de Figueiredo, mas também cientistas, intelectuais e políticos, jornalistas e filósofos, constituindo uma comunidade de características próprias: “Missão de tipo especial, não apenas por não ser formada por grupos definidos nem ter existido oficialmente, mas porque atuou dentro do universo da mesma língua” (Fernando Lemos/ Rui Moreira Leite, orgs. “A missão portuguesa: rotas entrecruzadas”. São Paulo/Bauru: Unesp/Edusc, 2003).

Esse volume, esclarecem os organizadores, “surgiu como desdobramento natural da mostra organizada para acompanhar o Congresso Internacional Sinais de Jorge de Sena, realizado em Araraquara, em continuidade ao Colóquio Internacional “Jorge de Sena e outros escritores num Brasil recente”, realizado no Rio de Janeiro, completados 20 anos da morte do poeta, em 1998”. Se franceses e italianos partiram para uma “terra de missão”, os portugueses chegaram a uma terra de exílio, porque a maior parte, se não todos eles, era constituída de opositores ao regime político de sua pátria, definindo-se, antes de mais nada, como refugiados em busca de uma posição duradoura, se não permanente, em nosso país.

Foi o caso das figuras estelares de Fidelino de Figueiredo, Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro, estes últimos aproveitando a oportunidade de congressos internacionais para aqui permanecer. Nessa condição e no plano biográfico, repetiram, sem querer, o destino clássico de “vencidos da vida”, segundo a conhecida fórmula de Eça de Queiroz: “Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou — mas do ideal íntimo a que aspirava”. Não é arbitrária a evocação de Eça de Queiroz a respeito daqueles intelectuais, pois Eça é, com certeza, a pedra de toque da literatura portuguesa e seu pensamento crítico. Cada um deles pode ser triangulado pelo espaço que lhe reservam nos respectivos universos mentais.

Se Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro singularizam-se por uma atitude de depreciativa indiferença no que se refere a Eça de Queiroz (salvo dois pequenos trabalhos juvenis de Casais Monteiro), — situando-se, por temperamento e ideologia no pólo exatamente oposto — Fidelino de Figueiredo, em quem Oliveira Lima via um “formoso espírito de erudito moderno”, procurou avaliar-lhe a “presença” em livro de 1933 sugestivamente intitulado “Depois de Eça de Queiroz”... A verdade é que, depois de Eça de Queiroz, a literatura portuguesa pareceu reduzida à condição dos portugueses que, segundo Fernando Pessoa, tendo descoberto o caminho marítimo das Índias, ficaram sem trabalho.

Contudo, a essa altura, as coisas se estavam sub-repticiamente organizando. Com a fundação da Faculdade de São Paulo, em 1934, para onde viriam tantos intelectuais portugueses, Portugal descobre Fernando Pessoa, no mesmo ano, ao aparecimento de “Mensagem”, seu único livro publicado em vida. No ano seguinte, com a legendária carta sobre os heterônimos, seu nome ficaria para sempre ligado ao de Adolfo Casais Monteiro, que lhe publica os dois volumes de “Poesia”, em 1945, com a introdução que ficou célebre. Assim, depois de Eça de Queiroz, veio Fernando Pessoa, destinado a tomar-lhe o lugar no interesse crítico alguns anos depois.

Para Jorge de Sena, entretanto, o “contemporâneo capital” não seria Fernando Pessoa, muito menos Eça de Queiroz, mas Luís de Camões, recuperado numa série de estudos fundamentais. A todos eles Eça de Queiroz opunha-se por implicação como outra realidade literária, que podemos identificar com o fradiquismo, ao acaso do livro de Ana Nascimento Piedade, trabalho exemplar de inteligência exegética e sólida pesquisa intelectual (“Fradiquismo e modernidade no último Eça”. 1889-1900. Prefácio de Isabel Pires de Lima. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003).

Sua tese central é o encontro do modernismo de Eça-Fradique com o de Fernando Pessoa, idéia que Casais Monteiro teria recebido com hostilidade, sendo, como era, completamente alheio ao humor e à ironia. A modernidade Eça-Fradique seria aponte de comunicação, se não de afinidade, com o modernismo de Fernando Pessoa. Claro, acentua ela, “a identidade e o estatuto estético-literário de Fradique Mendes decorrem de uma ‘tática de pseudonímia’ e não de uma estratégia de heteronímia”. O “primeiro Eça” ter-se-ia antecipado ao sensacionismo, “conceito central da estética modernista portuguesa, ou seja, Fernando Pessoa. [...] Assim a recriação modernista pode — e deve — ser confrontada com procedimentos estético-literários deste primeiro Eça, que, curiosamente, é aquele que mais se relaciona com o último Eça”.

A condição de exilados criou para Casais Monteiro e Jorge de Sena a ambígua situação de ausentes ou marginais da literatura portuguesa viva, simétrica à sua inevitável marginalidade na literatura brasileira: por mais que escrevessem sobre ela, por mais que se integrassem no país, eram portugueses, a qualidade de “escritor português” tendo sido expressamente reivindicada por Jorge de Sena até a fim da vida, assim como passou boa parte dela reclamando o lugar de grande importância que era o seu e que só postumamente lhe foi reconhecido. Quanto a Casais Monteiro, transferiu para o Brasil as atitudes agressivas da juventude, para nada dizer da irritação que lhe causava o suposto “nacionalismo” dos brasileiros.

É preciso reconhecer que “temos traços próprios”, escreve Antônio Candido na prefácio, “e o velho Brasil luso-brasileiro deixou de existir como dimensão única, ante a profunda mistura racial e cultural devida às imigrações”. Resta o “substrato unificador poderoso formado pela língua”; em suma, “no Brasil, os portugueses são estrangeiros de tipo especial”, realidade que devemos aceitar, acrescento eu, para além das bem intencionadas “comunidades políticas” e das mal inspiradas reformas ortográficas.

 
 

 

 

 

 

03/01/2006