Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Verdades africanas


07.02.2004

Condicionada, como está, pela complexidade dos valores morais de cada autor, a historiografia da escravidão é geralmente tendenciosa, a começar pelos anacronismos mentais em que muitos deles ignoram a “consciência possível” nos momentos em que os fatos ocorreram, em que as instituições se estabeleceram e o sistema de idéias predominantes. Aceitas como apotegmáticas em determinado período, algumas “verdades” são rejeitadas como falsas em outros: enquanto sistema econômico de produção o regime escravocrata foi legítimo e legal em quatro séculos da vida brasileira, deixando de sê-lo depois da Abolição; o número de africanos introduzidos no país varia segundo as estimativas arbitrárias dos que desejam aumentá-lo ou diminuí-lo de acordo com as respectivas conveniências.

Nesse quadro, apoiada em fatos, não em convicções doutrinárias, é excepcional, na qualidade e na natureza, a obra do grande africanólogo que é Alberto da Costa e Silva (“Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África”. Rio: Nova Fronteira, 2003). É o livro das verdades africanas, a começar, justamente, pelos números reais de todo o processo.

Valendo-nos da autoridade duplamente incontestável de Edison Carneiro e Alberto da Costa e Silva, que o cita, podemos ter como certo que a lei de 13 de maio “apenas reconhecia um estado de fato”, pois, naquele momento, “o negro escravo era menos de 5% sobre a população nacional, formada majoritariamente por mestiços e descendentes puros de africanos”. A Abolição “beneficiou 750 mil escravos em todo o país. Menos de um décimo da população de cor (...). Se o recenseamento populacional brasileiro de 1872 revelara a existência de quatro milhões de mulatos e mestiços, e de dois milhões de negros, num total de dez milhões de habitantes, no recenseamento de 1890 — dois anos após a abolição — contaram-se 6.302.198 brancos, 5.934.291 mestiços e 2.097.426 negros”. A lei de repressão do tráfico se, nos primeiros anos, resultou no aumento previsível de clandestinos, acabou por produzir resultados: “em 1852, setecentos escravos ainda descem nas costas brasileiras, mas, nos dois anos seguintes, não há notícias de africanos contrabandeados”.

Conhece-se o pensamento de Bernardo Pereira de Vasconcelos, segundo o qual a África civilizou a América (i. é, o Brasil), mas a lição central e não menos verdadeira que se tira do livro de Alberto da Costa e Silva é que o Brasil, em proporção nada desprezível, civilizou a África, não só pelo volume e categoria dos escravos que retornaram ao continente de origem, mas também pelo que o tráfico representou como elemento de ligações orgânicas entre as duas margens do rio Atlântico. Houve trocas em ambas as direções: “assim, a África recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil e Cuba faziam seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa. (...) No território brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos por seus desafetos como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir o pouco que podiam das estruturas políticas e religiosas das terras de onde haviam partido”.

Por falar em estruturas políticas africanas, Alberto da Costa e Silva aponta, com agudeza, para um efeito perverso da campanha supostamente humanitária contra o tráfico: “Pouco a pouco, mas sem recuos duradouros, o combate humanitarista ao tráfico de escravos, o sentimento de missão civilizadora européia e as teorias do livre comércio foram fazendo prevalecer na Grã-Bretanha, como no resto da Europa, as teses da efetiva ocupação colonial da África sobre o pensamento daqueles que defendiam uma presença restrita a entrepostos comerciais. A luta contra os traficantes de escravos tornou-se o grande instrumento da derrubada sistemática das estruturas políticas africanas. (...) Mudara, pouco a pouco, a Europa, de uma política de empórios na África, para uma política de colônias. Da feitoria ao império. Do comércio à fixação. A Grã-Bretanha, a França e, mais tarde, outras potências européias buscavam assegurar a divisão do continente africano em zonas de monopólio comercial”.

Começava a História do século XX, enquanto o tráfico seria utilizado como veículo de evangelização, instrumento para a expansão da fé e salvação das almas. De fato malogrou por completo a conquista espiritual de Angola, sendo “contadíssimas exceções” as conversões que ocorreram, malogro que, segundo Alberto da Costa e Silva, confirmaria, entre os jesuítas, “a tese justificadora do tráfico negreiro, de que só retirando o africano da África era possível convertê-lo”. Em outras palavras, era bom ser escravo, era ótimo possuí-los ou traficar com eles: “Muitos dos traficantes e dos mestres negreiros foram africanos ou brasileiros descendentes de africanos, o que não é de se estranhar, quando o observador se põe na perspectiva da época e verifica que os negros libertos, no Brasil, também eram com freqüência donos de escravos. (...) Brancos e mulatos, uns poucos, e os demais negros nascidos na África ou no Brasil, não faltaram os que se tornaram, do mesmo modo que os malês, traficantes de escravos.”

Os escravos que vieram para o Brasil e aqui passaram a viver com a nostalgia da África, sofreram decepção desambientadora quando puderam regressar: “Chegados ao outro lado do mar, muitos sentiram-se traídos. Não era aquela a África que traziam na memória. (...) Viam-se como estrangeiros na África. E começaram a construção da saudade do Brasil” — fenômeno em tudo semelhante ao dos imigrantes europeus que se instalaram no sul do Brasil com o propósito de constituir um pecúlio e voltar as terras de origem — onde não conheciam mais ninguém, estranhavam os hábitos e as idéias, sentindo-se eles mesmos estrangeiros entre estrangeiros.

Link para Alberto da Costa e Silva

 

 

 

 

 

03/01/2006