Condicionada, como está, pela
complexidade dos valores morais de cada autor, a historiografia da
escravidão é geralmente tendenciosa, a começar pelos anacronismos
mentais em que muitos deles ignoram a “consciência possível” nos
momentos em que os fatos ocorreram, em que as instituições se
estabeleceram e o sistema de idéias predominantes. Aceitas como
apotegmáticas em determinado período, algumas “verdades” são
rejeitadas como falsas em outros: enquanto sistema econômico de
produção o regime escravocrata foi legítimo e legal em quatro
séculos da vida brasileira, deixando de sê-lo depois da Abolição; o
número de africanos introduzidos no país varia segundo as
estimativas arbitrárias dos que desejam aumentá-lo ou diminuí-lo de
acordo com as respectivas conveniências.
Nesse quadro, apoiada em fatos, não em
convicções doutrinárias, é excepcional, na qualidade e na natureza,
a obra do grande africanólogo que é Alberto da Costa e Silva (“Um
rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África”.
Rio: Nova Fronteira, 2003). É o livro das verdades africanas, a
começar, justamente, pelos números reais de todo o processo.
Valendo-nos da autoridade duplamente
incontestável de Edison Carneiro e Alberto da Costa e Silva, que o
cita, podemos ter como certo que a lei de 13 de maio “apenas
reconhecia um estado de fato”, pois, naquele momento, “o negro
escravo era menos de 5% sobre a população nacional, formada
majoritariamente por mestiços e descendentes puros de africanos”. A
Abolição “beneficiou 750 mil escravos em todo o país. Menos de um
décimo da população de cor (...). Se o recenseamento populacional
brasileiro de 1872 revelara a existência de quatro milhões de
mulatos e mestiços, e de dois milhões de negros, num total de dez
milhões de habitantes, no recenseamento de 1890 — dois anos após a
abolição — contaram-se 6.302.198 brancos, 5.934.291 mestiços e
2.097.426 negros”. A lei de repressão do tráfico se, nos primeiros
anos, resultou no aumento previsível de clandestinos, acabou por
produzir resultados: “em 1852, setecentos escravos ainda descem nas
costas brasileiras, mas, nos dois anos seguintes, não há notícias de
africanos contrabandeados”.
Conhece-se o pensamento de Bernardo
Pereira de Vasconcelos, segundo o qual a África civilizou a América
(i. é, o Brasil), mas a lição central e não menos verdadeira que se
tira do livro de Alberto da Costa e Silva é que o Brasil, em
proporção nada desprezível, civilizou a África, não só pelo volume e
categoria dos escravos que retornaram ao continente de origem, mas
também pelo que o tráfico representou como elemento de ligações
orgânicas entre as duas margens do rio Atlântico. Houve trocas em
ambas as direções: “assim, a África recebeu e africanizou a rede, a
mandioca e o milho, enquanto o Brasil e Cuba faziam seus o dendê, a
malagueta e a panaria da Costa. (...) No território brasileiro, reis
e nobres africanos, vendidos por seus desafetos como escravos,
buscaram, algumas vezes, reconstruir o pouco que podiam das
estruturas políticas e religiosas das terras de onde haviam
partido”.
Por falar em estruturas políticas
africanas, Alberto da Costa e Silva aponta, com agudeza, para um
efeito perverso da campanha supostamente humanitária contra o
tráfico: “Pouco a pouco, mas sem recuos duradouros, o combate
humanitarista ao tráfico de escravos, o sentimento de missão
civilizadora européia e as teorias do livre comércio foram fazendo
prevalecer na Grã-Bretanha, como no resto da Europa, as teses da
efetiva ocupação colonial da África sobre o pensamento daqueles que
defendiam uma presença restrita a entrepostos comerciais. A luta
contra os traficantes de escravos tornou-se o grande instrumento da
derrubada sistemática das estruturas políticas africanas. (...)
Mudara, pouco a pouco, a Europa, de uma política de empórios na
África, para uma política de colônias. Da feitoria ao império. Do
comércio à fixação. A Grã-Bretanha, a França e, mais tarde, outras
potências européias buscavam assegurar a divisão do continente
africano em zonas de monopólio comercial”.
Começava a História do século XX,
enquanto o tráfico seria utilizado como veículo de evangelização,
instrumento para a expansão da fé e salvação das almas. De fato
malogrou por completo a conquista espiritual de Angola, sendo
“contadíssimas exceções” as conversões que ocorreram, malogro que,
segundo Alberto da Costa e Silva, confirmaria, entre os jesuítas, “a
tese justificadora do tráfico negreiro, de que só retirando o
africano da África era possível convertê-lo”. Em outras palavras,
era bom ser escravo, era ótimo possuí-los ou traficar com eles:
“Muitos dos traficantes e dos mestres negreiros foram africanos ou
brasileiros descendentes de africanos, o que não é de se estranhar,
quando o observador se põe na perspectiva da época e verifica que os
negros libertos, no Brasil, também eram com freqüência donos de
escravos. (...) Brancos e mulatos, uns poucos, e os demais negros
nascidos na África ou no Brasil, não faltaram os que se tornaram, do
mesmo modo que os malês, traficantes de escravos.”
Os escravos que vieram para o Brasil e
aqui passaram a viver com a nostalgia da África, sofreram decepção
desambientadora quando puderam regressar: “Chegados ao outro lado do
mar, muitos sentiram-se traídos. Não era aquela a África que traziam
na memória. (...) Viam-se como estrangeiros na África. E começaram a
construção da saudade do Brasil” — fenômeno em tudo semelhante ao
dos imigrantes europeus que se instalaram no sul do Brasil com o
propósito de constituir um pecúlio e voltar as terras de origem —
onde não conheciam mais ninguém, estranhavam os hábitos e as idéias,
sentindo-se eles mesmos estrangeiros entre estrangeiros. |