Sílvio Romero assinalou 1870 como ano
climatérico de nossa história mental, ruptura entre o que podemos
ter como “idade romântica”, que se exauria por consumpção, e a
“idade realista”, que então se iniciava pela concomitância de
mudanças em todas as ordens de pensamento e vida coletiva. Como para
implantar os marcos simbólicos dessa transição, a vida editorial se
esmerou em colocar frente a frente José de Alencar, já então tomando
as suas distâncias com relação ao ideário romântico, e Luís
Guimarães Jr., com a resposta sarcástica às idealizações romanescas
e poéticas do pé feminino, tratadas em “A pata da gazela” com
perturbadoras conotações de perversão sexual, provando que o
problema estava apenas à espera das teorias freudianas
correspondentes.
Em 1870, Alencar é homem ressentido e
amargo, planejando vingar-se, pela literatura, das desilusões e
desgostos da vida pública. Aí começava, escrevia ele, “outra idade
do autor, à qual eu chamei de ‘minha velhice literária’, adotando o
pseudônimo de ‘Stênio’, e outros querem seja a da decrepitude. Não
me afligi com isto, eu que, digo-lhe com todas as veras, desejaria
fazer-me escritor póstumo, trocando de boa vontade os favores do
presente pelas severidades do futuro”. Era a desilusão romântica
encontrando terreno predestinado na sua hipocondria orgânica.
Claro, não devemos ignorar nem
subestimar o lado tenebroso do romantismo, com os seus monstros
físicos e morais, seu fascínio pelas aberrações, sua atração pelas
anormalidades. Isso nos deve premunir contra as simplificações
didáticas e as verdades de manual. Sabe-se que, em “A pata da
gazela”, o tema central é um caso de feiticismo erótico, com o qual
o próprio Alencar desmistifica a visão idealizadora do sentimento
amoroso, sendo, na acepção rigorosa da palavra, o nosso primeiro
romance realista e até naturalista, se lhe considerarmos as
implicações fisiológicas, que ele qualificava de “aberração da
alma”.
Nesse romance, são perceptíveis as
conotações humorísticas, contrabalançando-lhe a natureza dramática,
tudo confirmado pelos episódios grotescos, nomeadamente o que se
liga à noite nupcial da heroína. Nisso, e inesperadamente, “A pata
da gazela” se torna a fase complementar e simétrica do romance de
Luís Guimarães Jr. publicado no mesmo ano (“A família Agulha”. Ed.
Flora Süssekind. Rio: Vieira & Lent/Fundação Casa de Rui Barbosa,
2003). É livro que, já agora, pressupõe leitores razoavelmente
familiarizados com a vida carioca da época, para o que são
indispensáveis as notas esclarecedoras de Flora Süssekind: nesse
caso, é melhor pecar por excesso com ela do que por deficiência sem
ela.
“A família Agulha” pertence a uma
genealogia bem mais rica do que em geral se imagina, lembra Flora
Süssekind, incluindo “obras como ‘Memórias de um sargento de
milícias’, de Manuel Antônio de Almeida, ‘O garatuja’, de José de
Alencar, as ‘Memórias de um sobrinho de meu tio’, ‘A carteira de meu
tio’ e ‘A luneta mágica’, de Joaquim Manuel de Macedo”, continuando
pelo tempo afora, todos na categoria dos livros injustamente
subestimados, como, por exemplo, “Dois metros e cinco” (1905), de
Cardoso de Oliveira, romance construído por episódios justapostos e
peripeciais como na favela picaresca — espécie, claro está, em que
também se incluía “A família Agulha”.
De “A pata da gazela” para “A família
Agulha” houve apenas a contigüidade cronológica, sendo impossível
que Luís Guimarães Jr. tivesse sofrido qualquer influência de um
livro publicado simultaneamente com o seu. O mesmo não ocorre no que
se refere as “Memórias de um sargento de milícias”, do qual “A
família Agulha” repete, com evidente superioridade na arte
narrativa, a estrutura, a concepção dos caracteres e muitas cenas
específicas, como, por exemplo, o parto de Eufrásia, mulher
apresentada com “uma cabeça insignificante, um pescoço de milha e
meia e um par de pés que podiam servir de pedestal a ela, à família
toda e a algumas tribos mais”. De qualquer maneira, cabe dirigir a
Luís Guimarães Jr. muitos dos louvores que a crítica costuma
reservar ao seu antecessor.
Foi por aquele pé 47 que Anastácio se
apaixonou, a tal ponto que, quando o filho nasceu com pés normais,
ele gritou espantado que a criança não tinha pés. Mas, o que há de
interessante no romance é a invenção das cenas que mais tarde iriam
caracterizar as comédias cinematográficas de pastelão. Assim, por
exemplo: “Anastácio já tinha perdido a cabeça. Agarrou no chicote e
arremessou-o com toda a força sobre os dois quadrúpedes, o carro
partiu à toda desfilada; na janela Sacramento fazia sinais e chamava
por Agulha; Joaninha teve um faniquito; Eufrásia puxava desesperada
as abas do paletó do marido, e Leocádio Boa-Morte, com ambas as
pernas fora do carro, gritava como um possesso. O boleeiro deitou a
correr atrás acenando com o chapéu: um grupo de curiosos
engrossou-se e daí a momentos era uma multidão a todo o galope
perseguindo o coche fantástico, que subia pelas calçadas, atropelava
gente, quebrava vidraças com a rapidez de uma locomotiva a vapor”.
É uma novela picaresca mas é também um
romance de costumes, como nos episódios do Alcazar e na cenas
eleitorais, sobre cujo mecanismo é preciso lembrar que, pelo sistema
do chamado “censo alto”, os cidadãos chamados de “votantes”
escolhiam os “eleitores” que, por sua vez, formariam o colégio
eleitoral. Em eleições, dizia Anastácio Agulha com a sabedoria dos
séculos, “é a esperteza quem ganha” — a esperteza e os cacetes dos
cabos eleitorais e fiscais de urnas: “A oposição perdia terreno. O
governo, como todos os governos existentes e por existir, fez
estacionar em cada igreja um quartel com todas as munições para o
combate, distribuindo capangas e espalhando prosélitos, munidos de
plenos poderes para o que desse e viesse (...).”
Anastácio, “fraco em raciocínios
sérios, mas destro na velhacaria e na ladroeira”, arrancou dinheiro
dos ingênuos para organizar a oposição, fugindo da cidade quando,
como seria de esperar, todos foram “traídos”. |