A inclusão dos contos de José Castello
numa coleção de “melhores crônicas” pareceu-me, a princípio, mera,
embora inexplicável, inadvertência editorial, mas não: foi
deliberado, como se vê no prefácio de Leyla Perrone-Moisés que,
dizendo-se “fundamentada nos princípios mais elementares da teoria
literária”, apresenta-o como “cronista fantástico” (José Castello.
“Melhores crônicas”. São Paulo: Global, 2003). É certo que ele mesmo
qualifica de “crônica” o conto “Se Virginia Woolf fosse minha
empregada”, tudo isso acrescentando uma inesperada dimensão de
absurdo à literatura fantástica em que ele é mestre inegável.
Tomar uma pela outra duas espécies
literárias que nem mesmo são similares será, pois, um engano, não de
qualquer “princípio elementar” de teoria literária, mas da teoria
dos gêneros em geral. Castello pratica os contos do absurdo sem as
implicações moralizantes ou filosóficas que geralmente os
acompanham: não se trata de histórias de proveito e exemplos, nem de
fábulas ou apólogos educativos, nem de observações irônicas da vida
real. São situações absurdas nelas mesmas, o absurdo em estado puro,
por assim dizer. Na observação de Leyla Perrone-Moisés, o tema da
identidade predomina nesses contos que ela denomina de “crônicas”:
identidades imaginárias ou falsamente assumidas, o clássico tema do
duplo e até a identidade de um personagem fictício, como “Nos passos
de Alexander Search”.
Muitas dessas “crônicas”, escreve ela,
“enquadram-se na categoria do fantástico”, ou seja, ”enquadram-se“
em formas completamente diversas da criação literária. Como contista
do absurdo, Castello pertence à família de espíritos que tem em
Campos de Carvalho (1916-1998) um clássico reconhecido,
periodicamente recuperado dos periódicos esquecimentos em que recai
por nossa carência de organicidade intelectual (“A lua vem da Ásia”,
1956; “A vaca de nariz sutil”, 1961; “Púcaro búlgaro”, 1964).
O conto do absurdo nem de longe se
confunde com a crônica — se quisermos preservar alguma clareza
terminológica — mas é certo que tem fronteiras comuns com o
fantástico (o fantástico “realista”, não o fantástico simplesmente
arbitrário). Mesmo um modernista tardio ou menor, como Orígenes
Lessa (1903-1986), antecipou-se, em 1948, a Campos de Carvalho
(autor dos anos 60) com “A desintegração da morte (e outros
contos)”, agora incluído na série dos “Melhores contos”, seleção de
Glória Pondé, na mesma editora Global. Ele pertenceu ao que se
poderia chamar o realismo urbano, a vida de todos os dias, a
humanidade comum, sob perceptível influência de Alcântara Machado.
Mas, com o livro de 1948, recriou o
tradicional “cientista louco” e suas incontroláveis invenções (“A
desintegração da morte”). O absurdo das situações comuns
inspirou-lhe o conto “Um número de telefone”, assim como “Milhar
seco”, na veia de Alcântara Machado e o mundo ítalo-paulista da
imigração.
O absurdo das situações quotidianas é
o tema do referido “Um número de telefone”, absurdo mas não
fantástico, enquanto o fantástico “realista” é a história da
desintegração da morte. No caso, mergulhado em seu laboratório,
Klepstein “passara 35 anos preso àquela obsessão, verdadeira
monomania que fora, em certa época (...) a desintegração da morte,
por ele imaginada, era uma espécie de moto-contínuo. (...)
Consideravam-no doido” — mas a verdade é que inventara a maneira de
vencer a morte, sem nunca pensar nas conseqüências.
Nos primeiros tempos, o invento foi
recebido no mundo todo com verdadeiras explosões de júbilo: ninguém
mais morria, farmácias e hospitais eram destruídos pela população em
delírio, os médicos viam-se atacados e agredidos pelas ruas... Mas,
logo se verificou que a invenção “apenas afastava a morte, mas não
impedia a doença, e muito menos a velhice (...). Os hospitais tinham
mais clientes do que nunca. E distúrbios nervosos ainda não
estudados se repetiam em toda parte, resultantes da certeza de não
mais morrer. Antes, era o temor da morte que os esmagava. Agora, o
futuro terrível. Os casos de loucura se multiplicavam, explodindo
nos momentos mais agudos da dor (...)”.
A situação se tornava cada vez mais
desesperadora, até que um dia “constou que na União Soviética um
grupo de cientistas trabalhava febrilmente na reintegração da morte.
(...) A morte se aproximava. A morte estava para dentro em breve.
(...) Havia mesmo mortes experimentais que davam aparência e
esperança de morte definitiva, nos laboratórios do Cáucaso. Foi
quando a humanidade se alarmou. E como nos esquecidos tempos da luta
pela bomba atômica, recomeçou a corrida internacional, já não mais
pela reconquista, mas pelo monopólio da morte”. Vê-se que o
cientista louco não existe apenas na ficção.
É completamente diversa a arte
literária de José Castello, a começar pelo gabarito intelectual que,
antes de mais nada, condiciona a verossimilhança. Tudo bem
considerado, “A reintegração da morte” é uma fantasia, que o leitor
toma como invenção sem compromisso com os pressupostos realistas da
ficção literária. Os contos de José Castello, diferindo dos de
Orígenes Lessa, não se fundam na intriga, nem dependem de uma
seqüência peripecial. De fato, na vida como na literatura, o absurdo
é um bloco maciço, sem explicação racional, ou, se quisermos, com o
seu tipo específico de racionalidade interior. Assim, no conto “A
mulher de olhos fechados”, revela-se o que há de estranho na
banalidade de todos os dias: “No topo da escada há uma porta, que
está aberta. Uma datilógrafa, com as unhas pintadas em bordô, parece
muito concentrada em seus papéis. ‘dr. Romero, por favor’, eu digo e
ela, contrariada, responde: ‘Espere um pouco, por obséquio’”.
Nada mais “realista”, mas é esse
realismo que forma o absurdo de situação numa história em que o
protagonista é o dr. Romero, “investigador”, isto é, o detetive de
quem se espera o comportamento mais racional. O absurdo é um bloco,
quero dizer, cada momento absurdo é um bloco, sendo inconfundíveis e
jamais repetitivas as histórias de José Castello. |