Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Fronteiras do absurdo


27.03.2004

A inclusão dos contos de José Castello numa coleção de “melhores crônicas” pareceu-me, a princípio, mera, embora inexplicável, inadvertência editorial, mas não: foi deliberado, como se vê no prefácio de Leyla Perrone-Moisés que, dizendo-se “fundamentada nos princípios mais elementares da teoria literária”, apresenta-o como “cronista fantástico” (José Castello. “Melhores crônicas”. São Paulo: Global, 2003). É certo que ele mesmo qualifica de “crônica” o conto “Se Virginia Woolf fosse minha empregada”, tudo isso acrescentando uma inesperada dimensão de absurdo à literatura fantástica em que ele é mestre inegável.

Tomar uma pela outra duas espécies literárias que nem mesmo são similares será, pois, um engano, não de qualquer “princípio elementar” de teoria literária, mas da teoria dos gêneros em geral. Castello pratica os contos do absurdo sem as implicações moralizantes ou filosóficas que geralmente os acompanham: não se trata de histórias de proveito e exemplos, nem de fábulas ou apólogos educativos, nem de observações irônicas da vida real. São situações absurdas nelas mesmas, o absurdo em estado puro, por assim dizer. Na observação de Leyla Perrone-Moisés, o tema da identidade predomina nesses contos que ela denomina de “crônicas”: identidades imaginárias ou falsamente assumidas, o clássico tema do duplo e até a identidade de um personagem fictício, como “Nos passos de Alexander Search”.

Muitas dessas “crônicas”, escreve ela, “enquadram-se na categoria do fantástico”, ou seja, ”enquadram-se“ em formas completamente diversas da criação literária. Como contista do absurdo, Castello pertence à família de espíritos que tem em Campos de Carvalho (1916-1998) um clássico reconhecido, periodicamente recuperado dos periódicos esquecimentos em que recai por nossa carência de organicidade intelectual (“A lua vem da Ásia”, 1956; “A vaca de nariz sutil”, 1961; “Púcaro búlgaro”, 1964).

O conto do absurdo nem de longe se confunde com a crônica — se quisermos preservar alguma clareza terminológica — mas é certo que tem fronteiras comuns com o fantástico (o fantástico “realista”, não o fantástico simplesmente arbitrário). Mesmo um modernista tardio ou menor, como Orígenes Lessa (1903-1986), antecipou-se, em 1948, a Campos de Carvalho (autor dos anos 60) com “A desintegração da morte (e outros contos)”, agora incluído na série dos “Melhores contos”, seleção de Glória Pondé, na mesma editora Global. Ele pertenceu ao que se poderia chamar o realismo urbano, a vida de todos os dias, a humanidade comum, sob perceptível influência de Alcântara Machado.

Mas, com o livro de 1948, recriou o tradicional “cientista louco” e suas incontroláveis invenções (“A desintegração da morte”). O absurdo das situações comuns inspirou-lhe o conto “Um número de telefone”, assim como “Milhar seco”, na veia de Alcântara Machado e o mundo ítalo-paulista da imigração.

O absurdo das situações quotidianas é o tema do referido “Um número de telefone”, absurdo mas não fantástico, enquanto o fantástico “realista” é a história da desintegração da morte. No caso, mergulhado em seu laboratório, Klepstein “passara 35 anos preso àquela obsessão, verdadeira monomania que fora, em certa época (...) a desintegração da morte, por ele imaginada, era uma espécie de moto-contínuo. (...) Consideravam-no doido” — mas a verdade é que inventara a maneira de vencer a morte, sem nunca pensar nas conseqüências.

Nos primeiros tempos, o invento foi recebido no mundo todo com verdadeiras explosões de júbilo: ninguém mais morria, farmácias e hospitais eram destruídos pela população em delírio, os médicos viam-se atacados e agredidos pelas ruas... Mas, logo se verificou que a invenção “apenas afastava a morte, mas não impedia a doença, e muito menos a velhice (...). Os hospitais tinham mais clientes do que nunca. E distúrbios nervosos ainda não estudados se repetiam em toda parte, resultantes da certeza de não mais morrer. Antes, era o temor da morte que os esmagava. Agora, o futuro terrível. Os casos de loucura se multiplicavam, explodindo nos momentos mais agudos da dor (...)”.

A situação se tornava cada vez mais desesperadora, até que um dia “constou que na União Soviética um grupo de cientistas trabalhava febrilmente na reintegração da morte. (...) A morte se aproximava. A morte estava para dentro em breve. (...) Havia mesmo mortes experimentais que davam aparência e esperança de morte definitiva, nos laboratórios do Cáucaso. Foi quando a humanidade se alarmou. E como nos esquecidos tempos da luta pela bomba atômica, recomeçou a corrida internacional, já não mais pela reconquista, mas pelo monopólio da morte”. Vê-se que o cientista louco não existe apenas na ficção.

É completamente diversa a arte literária de José Castello, a começar pelo gabarito intelectual que, antes de mais nada, condiciona a verossimilhança. Tudo bem considerado, “A reintegração da morte” é uma fantasia, que o leitor toma como invenção sem compromisso com os pressupostos realistas da ficção literária. Os contos de José Castello, diferindo dos de Orígenes Lessa, não se fundam na intriga, nem dependem de uma seqüência peripecial. De fato, na vida como na literatura, o absurdo é um bloco maciço, sem explicação racional, ou, se quisermos, com o seu tipo específico de racionalidade interior. Assim, no conto “A mulher de olhos fechados”, revela-se o que há de estranho na banalidade de todos os dias: “No topo da escada há uma porta, que está aberta. Uma datilógrafa, com as unhas pintadas em bordô, parece muito concentrada em seus papéis. ‘dr. Romero, por favor’, eu digo e ela, contrariada, responde: ‘Espere um pouco, por obséquio’”.

Nada mais “realista”, mas é esse realismo que forma o absurdo de situação numa história em que o protagonista é o dr. Romero, “investigador”, isto é, o detetive de quem se espera o comportamento mais racional. O absurdo é um bloco, quero dizer, cada momento absurdo é um bloco, sendo inconfundíveis e jamais repetitivas as histórias de José Castello.

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06/01/2006