Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Sendas que se bifurcam


01.05.2004

São os caminhos do conto moderno, que, ao acaso das edições e dos autores, podem ser os de Marília Pacheco Fiorillo (“Homens: duas sátiras e uma fábula”. São Paulo: Arx, 2004) e Iacyr Anderson Freitas (“Trinca dos traídos”. Juiz de Fora: FUNALFA, 2003), este último da linhagem que tem em José J. Veiga o pioneiro e o mestre, enquanto ela pertence à família estilística e temática de Márcia Denser, uma e outra fora de série no território específico e inconfundível que se reservaram.

Tanto em Marília Pacheco Fiorillo quanto em Márcia Denser (“O animal dos motéis”, 1981), trata-se do regionalismo urbano visto por suas singularidades emblemáticas — bares de intelectuais e artistas, ligações amorosas sempre conflitivas, retórica “revolucionária” e, bem entendido, os estabelecimentos mencionados por Márcia Denser. São contos em que o sarcasmo de observação constitui o elemento, como, nesta última, “Tigresa” e o que dá título ao volume, ao lado das duas sátiras de Marília Pacheco Fiorillo, escritoras realistas, mas de realismo diferente do de Marques Rebelo, cujas “Cenas da vida brasileira” (1944/51) foram agora incluídas, com evidente impropriedade de classificação, entre as suas melhores crônicas (Sel. Renato Cordeiro Gomes. São Paulo: Global, 2004).

Rebelo foi essencialmente contista (mesmo nas novelas cariocas e no ambicioso, embora malogrado, projeto de grande romance social), fixando “a vida de certo Rio de Janeiro, aquela das vidas humildes, dos pequenos dramas familiares, do arrastar do cotidiano de uma gente de classe social meio indefinida” (Renato Cordeiro Gomes), o que fazia com ironia, sem dúvida, mas ironia banhada no famoso leite da bondade humana. Isso não se confunde com o sarcasmo e o espírito corrosivo de Marília Pacheco Fiorillo e Márcia Denser, dois tipos específicos de realismo que, por sua vez, não se identifica com o realismo... surrealista de Iacyr Anderson Freitas. As veredas se bifurcaram a partir de módulos por assim dizer primevos e arcaicos, modelos opcionais para o desenvolvimento do conto literário, questão que Horacio Quiroga procurou esclarecer ao identificar-lhe os protótipos universais: Poe, Maupassant, Kipling e Tchekov, este último matriz de Katherine Mansfield (Horacio Quiroga. “Decálogo do perfeito contista”, 1927; trad. Sérgio Faraco). Na topografia do conto é possível distinguir, à maneira proustiana, os dois “lados” ao mesmo tempo antinômicos e complementares: o “lado Maupassant” e o “lado Tchekov”, dos quais derivariam todos os outros.

Marília Pacheco Fiorillo destruiu a homogeneidade técnica do conjunto (e sua qualidade literária) acrescentando uma “fábula” de sabor oriental (?) e folclórico aos outros contos. Erro tanto mais deplorável quanto a “fábula” não escapou, nem poderia ter escapado, do artifício soporífero do gênero, pecado mortal em literatura. Em compensação, as sátiras foram escritas com brilho e vivacidade, como no primeiro conto (“Enfim, um Homem”), em que a heroína se desilude com os sucessivos amores de passagem:

“Um convidava para ir ao cinema, só pagava o próprio ingresso e o próprio drinque, mais tarde, quando então desembestava a fazer associações livres entre o filme e suas últimas sessões de análise, e o quanto, quanto devia (pelo visto do espartano de suas despesas, não em cash) ao analista. Outro dava aula de literatura inglesa, e era de se esperar uma conversa mais arejada, mesmo que monotemática. Mas ela ficava cansada de ter de buscar e descarregar o professor toda vez, porque o letrado não tinha carro (...)”.

Esse é o estilo, mas o que vem em seguida é ainda melhor, nas agitadas ligações com o treinador de caratê (é caso de dizê-lo), substituído, afinal, por um devorador interesse pela música:

“Tinham dito, também, que o professor de sax é um sueco lindo, dois metros de altura, loiríssimo, supermusical. Devia ser um tantinho melancólico, ela podia imaginá-lo no terraço da cobertura (nos Jardins, desta vez ela não arredava pé dos Jardins), bem tarde da noite, dedilhando Miles Davis. Um cara triste e caladão. Era disso que ela estava precisando”.

O realismo de Iacyr Anderson Freitas não rejeita as regiões turvas da realidade, como no conto “De bar em bar”:

“O que pode fazer um homem solitário, numa noite de sexta-feira, sob um calor de trinta e cinco graus? Talvez andar um pouco, descer a longa avenida em busca de brisa ou companhia. Eis o que fiz. Os bares estavam cheios, mesas tomando as calçadas, garçons gritando. Toda aquela agitação rompeu as janelas do meu apartamento e me puxou porta afora, para o mundo. (...) Outros bares surgiram. Decidi tomar uma cerveja, embora não tivesse encontrado ninguém para dividir dois dedos de prosa. (...) Um sujeito de aparência estranha e aspecto triste, também sem companhia, estava plantado duas mesas adiante. De minuto em minuto, ele me espiava, tentando em vão disfarçar seu desconforto. (...) O calor persistia, insuportável. Detive-me na esquina, diante de uma vitrina de roupas. Quando tornei a caminhar, deparei, vindo em minha direção, com o mesmo sujeito estranho que tanto me observara. Passamos em silêncio um pelo outro, com uma rápida troca de olhares. (...) Entrei por uma via lateral e, de súbito, passou por mim o mesmo sujeito. Tive a impressão de que ele iria me segurar pelo braço. (...) Já perto de casa, aguardando a oportunidade de atravessar a avenida, percebo a meu lado o mesmo sujeito. Enquanto o sinal de pedestre permanece vermelho, no decorrer daquela fugidia eternidade, ele se volta para mim: ‘Você também, não é?’ (...) Não tenho o que dizer. (...) Arrisco um gesto vago, quase imperceptível, um discreto meneio de cabeça. O sinal se abre e nós ainda nos olhamos, sem mais palavra”.

Em outra pauta, o conto “Aqueles bárbaros” rivaliza com o melhor surrealismo de José J. Veiga na história das duas nações em guerra desde tempos imemoriais, sem qualquer motivo e sem que os respectivos exércitos jamais se confrontem ou avistem. Afinal, o narrador depara por acaso com um soldado inimigo desgarrado, “seu irmão, seu igual”, e tão indefeso que não teve outro remédio senão matá-lo.

Link para Iacyr Anderson de Freitas

 

 

 

 

 

06/01/2006