O general Otelo, que também atendia
pela alcunha de “o Mouro de Veneza”, já estava sendo julgado há 350
anos quando, sob as espécies materiais de Paulo Autran, teve de se
apresentar, em 1961, perante o tribunal do júri de Curitiba, em
julgamento promovido pelo então presidente do Centro Acadêmico Hugo
Simas, da Faculdade de Direito da UFPR, hoje desembargador Munir
Karam. Não foi uma patuscada de estudantes, mas um julgamento
solene, com todos os rigores processuais de praxe, bastando dizer
que a presidência foi exercida pelo desembargador Ernani Guarita
Cartaxo, diretor da Faculdade, com dois famosos juristas na acusação
e na defesa, respectivamente José Rodrigues Vieira Netto e Carlos de
Araújo Lima (Munir Karam, org. “O julgamento de Otelo”. 2 ed.
Curitiba: s.e., 2004).
O júri, composto de 12 membros à moda
inglesa e apropriadamente localizado no Teatro Guaíra ainda em
construção, foi sorteado entre profissionais de diversas áreas
(professores, bancários, comerciários e acadêmicos de Direito),
entre eles figuras destinadas a se destacar na magistratura, na
advocacia e no Ministério Público, como Negi Calixto, Oto Sponholz,
Joselita Becker Barbosa e Benito Ítalo Pierri. Tendo havido empate
no escrutínio dos jurados, o réu foi absolvido pelo voto do
presidente, segundo as regras gerais de Direito. In dubio pro reu
... — num caso em que, como se sabe, não são as dúvidas e as
incertezas que faltam.
Cada geração, observei nas palavras
preliminares, busca em Otelo e tende a encontrar o seu próprio
retrato: no coração tumultuoso desse velho personagem das lendas
italianas é o nosso próprio coração que bate. Entre 1604, data
geralmente aceita como sendo a da composição e encenação da peça,
até aos nossos dias, o mito literário tem se sobreposto às suas
contradições psicológicas. A maior obstinação da crítica, e também o
seu malogro mais evidente, tem consistido em tentar unificá-lo, em
reduzi-lo à pobre coerência da humanidade comum.
Ora, o que antes de mais nada lhe
define a personalidade é que não se trata de um homem comum. Não é o
marido traído das crônicas policiais, mas um daqueles gênios
alucinados de grande homem em quem a sinceridade profunda equivale à
força invencível das tendências histriônicas. Já se observou, com
muita razão, que “esse homem tão seguro de si, tão fácil de enganar,
tão afetuoso e tão feroz”, sempre foi um pouco comediante. Ele
possui o sentimento da sua situação com relação aos que o cercam,
benevolente e altivo com uns, nobre e respeitoso com outros, tem
consciência de sua grandeza como da sua vergonha.
A sua vergonha... Trata-se da vergonha
orgânica ou subconsciente, do complexo de inferioridade de ser negro
e plebeu numa sociedade aristocrática de brancos, conforme exclamou,
durante o julgamento, na soberba dicção de Paulo Autran: “Talvez por
eu ser negro/ e não ter o falar adocicado/ e as maneiras suaves /
dos galantes da corte (...)”. Falando pela acusação, Vieira Netto
tendia para a tese do ciúme, mas aceitando a incoerência ao
declarar: “Otelo é um estrangeiro sem lar, que pertence a uma raça
desprezada, até mesmo pelos nobres venezianos que o acumularam de
honra e favores, mas que não o consideram num plano de igualdade” —
afirmando, contudo, ao mesmo tempo, que tais circunstâncias são
apenas o detalhe “que favorece a trama dos ciúmes”.
Do que Araújo Lima discordava, citando
o “crítico alemão Ulrici” (?): “não somente não é exato supor que os
atos sangrentos de Otelo sejam devidos a uma explosão da sua
natureza, de sua ferocidade nativa, mas a própria acusação movida
contra ele de ciúme cego e de ódio vingativo é uma imputação
absolutamente falsa. O ciúme não é realmente parte de sua natureza,
não é um dos traços fundamentais do seu caráter — toda a sua conduta
o demonstra”. Realmente, afirmava o advogado de defesa, “esse homem
que no campo do amor se deixou reqüestar porque não se atrevia à
grande iniciativa de mostrar os próprios sentimentos (...) esse
homem não é, nunca foi por sua natureza um ciumento”.
Claro, ele mesmo reconheceria (ou
Shakespeare por ele...) que havia enlouquecido “nas garras do
ciúme”, o que será menos contraditório do que parece, já que, três
séculos antes de Freud, não poderia ter consciência do seu complexo
de inferioridade, embora percebesse muito bem o racismo da sociedade
veneziana, comum, àquela altura e certamente ainda hoje, a toda a
sociedade ocidental: no quadro de valores da época, ser “mouro” era
ser negro para todos os efeitos úteis, tópico em que a acusação se
deixou enlear nas contradições que havia armado: “Alguns
comentadores apressados, imbuídos do pior racismo europeu e
norte-americano, vêem em Otelo um complexo de inferioridade racial,
na sua feia e surpreendente negrura. Otelo não é um negro. É um
Mouro da Mauritânia (...)”. Lembremos que, no vocabulário da época,
os portugueses chamavam os índios brasileiros de “negros” e os
africanos de “peças”, distinções semânticas de sugestiva
ramificações.
Bem entendido, nada disso corresponde
a eliminar a componente do ciúme no comportamento de Otelo — antes
pelo contrário. Não são noções excludentes entre si, mas
complementares e mutuamente estimulantes. Contudo, acrescentava o
promotor, “o segredo deste drama é um conflito interior e profundo —
um processo ‘emocional e inconsciente’ — da falta de estima por si
mesmo — a opinião que ‘inconscientemente merecemos de nós’”. Ora, o
ciúme não se origina na “falta de estima por si mesmo”, síndrome
específico do complexo de inferioridade, mas antes no sentimento de
insegurança.
É precisamente por tal peculiaridade
de caráter que ele se tornou vulnerável às intrigas de Iago, que,
convencendo-o do adultério, abalou-lhe as forças morais. Pode-se,
mesmo, pensar que lago é o verdadeiro herói dramático da peça, em
contraposição a Otelo, temperamento afinal de contas passivo e
“feminino”, cedendo sem resistência às maquinações de Iago, tipo
perfeito do intrigante no teatro universal, contraposto, em papel
dinâmico e atuante, ao personagem maleável com que contracenava. |