Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

O inventor de Bandeira


03.07.2004

Vindo dificilmente à lembrança como um dos lugares onde sopra o espírito, a cidade de Pouso Alto teve, entretanto, o seu momento de glória obscura e ignorada com a reunião de três homens que, esses sim, deixariam a sua marca na poesia brasileira: “Uma das visitas de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto resultaria no histórico encontro que fez com que a ‘casinha cor-de-rosa’ de Pouso Alto entrasse para a história social da nossa literatura, por sediar, no início de 1926, o encontro de Drummond, Bandeira e Couto. Fora este que, entusiasmado com ‘A Revista’, publicação dos modernistas mineiros, dirigida por Martins de Almeida e Drummond, tomara a iniciativa de escrever ao poeta de Itabira que, naquela ocasião, em viagem a Passa-Quatro, cidade próxima a Pouso Alto, resolvera visitar o amigo poeta-promotor” (Ribeiro Couto. “Três retratos de Manuel Bandeira”. Ed. Elvia Bezerra. Rio: Academia Brasileira de Letras, 2004).

Etimologicamente, inventor sendo quem descobre um tesouro oculto, Ribeiro Couto pode ser visto como inventor de Manuel Bandeira, porque, na condição de amigos mais antigo, foi o primeiro a reconhecer-lhe a qualidade de grande poeta. Acrescentem-se as afinidades de temperamento e de gosto que os uniam. Com o encontro de Pouso Alto, inventou também Carlos Drummond de Andrade, aproximando-o de Bandeira em amizade que duraria, em todos eles, para o resto da vida. A inibição de Drummond, observa Elvia Bezerra, “impediu-o de comer, beber ou mesmo sorrir (...) a ocasião não deixava de intimidar, por mais que eles me pusessem à vontade. Era um poeta municipal, diante de dois federais”.

Tanto Ribeiro Couto quanto Bandeira provinham daquele momento indeciso e melancólico que recebeu o nome de Penumbrismo: eram, de fato, poetas dos meios tons, da penumbra, dos crepúsculos, dos sentimentos íntimos, da modéstia, das vidas simples, do subúrbio, do “pudor de falar alto”, em contraste com as fanfarras declamatórias do Modernismo — características que, em grande parte, aplicam-se também a Carlos Drummond de Andrade e à proverbial reserva mineira. Nenhum deles sendo antimodernista (salvo jesuíticos subentendidos), não foram tampouco modernistas: eram poetas modernos, no que ultrapassavam os modernistas de estrita obediência das décadas de 20 e 30. As relações de Bandeira e Ribeiro Couto, escreve Elvia Bezerra, vinham do ano climatérico de 1922, quando se recusaram a participar da Semana: “Também não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados”.

É significativo que, em 1924, tratando do movimento literário, Mário de Andrade omitisse o nome de Ribeiro Couto, provocando imediata reação de Bandeira: “Grave omissão, grito eu por minha vez. Quem agitou o meio carioca e nele lançou as idéias modernas foi o Ribeiro Couto. Prestou o incomparável serviço de converter o Ronald. (...) Foi o Ribeiro Couto que com aquela vivacidade sedutora captou o Ronald. O Couto vivia falando no Oswald, em Anita, em Brecheret. Companheiro dele era o Di. Mas este não tinha a irradiação generosa do Couto. Eu era modernizante sem saber. Foi o Couto quem me revelou os italianos e os franceses mais novos, Cendrars e outros”.

E quem, com generosidade de inventor, revelou Bandeira ao Brasil que o ignorava. Pode-se pensar que o reconhecimento indiscutível data de 1936 com o volume de “Homenagem a Manuel Bandeira”, para o qual Ribeiro Couto escreveu um dos ensaios aqui incluídos: “o isolamento de Manuel Bandeira no Rio dificultava o seu conhecimento pessoal. Por natureza, ele era de ‘poucos amigos’. A meia doença, meia saúde em que vivia, agravava a dificuldade. Entre abril e dezembro daquele ano (1918), ninguém (...) entre os meus companheiros de curso jurídico ou de reportagem de jornal, pôde dizer-me quem era esse senhor Manuel Bandeira que desde São Paulo me encantara com a narração dos amores antigos”.

A vida literária, acrescentava, “tem as suas leis, o seu sistema, as suas exigências. Uma delas é a presença pessoal. Convém passar de vez em quando à porta das livrarias onde estão reunidos uns senhores que falam, que discutem, assinar a lista de certos banquetes e tomar parte noutras manifestações públicas”. Lição que Drummond e Bandeira, dois falsos solitários, não tardariam a aprender, mesmo que essas leis passassem a vigorar em lugares privilegiados, como os próprios apartamentos, o Sabadoyle ou o salão editorial mantido por José Olympio.

O caso de Manuel Bandeira é, entretanto, singular entre todos, ou, se quisermos exemplo mais recente, comparável ao de Pedro Nava: “Até os cinqüenta anos não era conhecido ou amado senão pelos happy few . Por ocasião de sua candidatura à Academia Brasileira, os três amigos empenhados nessa campanha — Múcio Leão, Cassiano Ricardo e eu — tiveram surpresas extraordinárias. Havia acadêmicos de então que ignoravam totalmente a existência da mina de ouro que lhes estávamos a oferecer para o patrimônio da Academia. (...) ... tínhamos por vezes que assegurar, como avalistas de uma promissória, o intuito puramente humorístico do ‘Rondó dos cavalinhos’ — que um inimigo do candidato havia espalhado entre mãos inocentes, como uma denúncia, quase como uma carta anônima. Se o recordo, é para mostrar quanto essa grave, essa austera figura de homem de letras, de poeta e de cidadão era então (e era já o ano de 1940) mal conhecida de homens ilustres, autênticos homens ilustres. O poeta andava por 54 anos”.

Curioso é que, tudo bem considerado, Bandeira encarnou como ninguém o academismo da poesia modernista, desbastando-lhe os excessos e as provocações, enraizando-a na tradição dos grandes mestres da língua e de outras línguas: ao provincianismo modernista ele contrapôs o universalismo da poesia. Foi um fator de equilíbrio, ainda mais evidente no papel morigerador que, mesmo implicitamente, veio a exercer junto a Mário de Andrade.

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09/01/2006