As obras menores não são
necessariamente inferiores ou desprezíveis, havendo mesmo as que se
tornaram clássicas da espécie, como, por exemplo, “A princesa de
Clèves” (1678), transição do romance “precioso” seiscentista para o
que afinal se configurou no século XIV. Sendo dois os vetores
mutuamente complementares do julgamento crítico — a qualidade e a
grandeza — as obras menores dignas de consideração só satisfazem ao
primeiro deles, sem alcançar o plano e a estatura das obras-primas
indiscutíveis. A qualidade mede-se por estalões quase artesanais ou
técnicos: perfeição e beleza do estilo, arquitetura narrativa,
originalidade da história, enquanto a grandeza responde a outro
quadro de valores: análise psicológica profunda, testemunho do
homem, inserção em temas históricos, conflitos de personalidades,
além, bem entendido, do elemento de tragédia ou fatalidade,
implícito no destino.
Tudo isso pressupõe o desenvolvimento
da narrativa na extensão imposta pela matéria: não se trata do
volume físico, mas sempre é certo que “Guerra e paz” não poderia ter
sido escrito em 120 páginas. Sem levar a idéia ao absurdo polêmico,
as obras menores são também “menores” em extensão, dadas a temática
simples e a exposição retilínea por definição, enquanto as outras
desenvolvem-se “em rosácea”, unificadas em torno de um núcleo
gerador, como centro de convergência e irradiação. O romance de
Marcelo Carneiro da Cunha (O nosso juiz. Rio: Record, 2004) foi
construído pelo modelo, deliberado ou acidental, da peça de Thornton
Wilder, “Nossa cidade” (1938, filme de Sam Wood em 1940), no qual um
contra-regra aqui representado pelo escrivão Antônio descreve e
comenta a vida da “cidade pequena, onde nenhum infortúnio consegue
passar despercebido, nenhuma questão individual permanece individual
por mais tempo do que alguém leva para quebrar a promessa de
silêncio feita por quem nunca pretendeu cumprir a quem nunca
realmente acreditou que ela pudesse ser cumprida, não em São João,
não ao que, ao menos”.
A história e os pequenos e grandes
dramas da vida cotidiana giram em torno da chegada do primeiro juiz
de direito, designado para inaugurar o foro local, em rivalidade com
a cidade vizinha. Os habitantes precisavam vencer um constrangedor
complexo de inferioridade: “O clima da serra tornou São João fria
demais para ser invadida por migrantes do Norte, remota demais para
receber funcionários públicos, estéril demais para a maior parte das
agriculturas, pobre demais para chamar aventureiros e pequena demais
para interessar quem quisesse mudanças de qualquer tipo. O século XX
não tinha sido um incômodo até então, e a vida seguia o ritmo que a
maioria da população considerava o ideal, em geral por desconhecer
por completo qualquer outro”.
Era impossível entender São João “sem
entender o que representa Campos da Serra, a cidade mais próxima de
nós, infelizmente próxima, segundo os moradores daqui, que gostavam
de muitos mais quilômetros de lama entre nós e os gringos. (...)
Cidade de imigrantes italianos, nem mesmo brasileiros de verdade,
vivendo no meio da sujeira de uma fábrica de celulose e bebendo água
de um rio depois de ele já ter passado por umas cinco outras
localidades, coisa que gente decente nenhuma faria, da mesma forma
que a gente decente de São João se quedava diante do incompreensível
orgulho dos gringos pelas indústrias deles (...).”
É nesse quadro que transcorre o
dia-a-dia de São João, com os seus “tipos” urbanos, paixões e
crimes, episódios tenebrosos do passado, rivalidades e suspeitas, em
suma, o ambiente convencional da “cidade pequena” estereotipada. Daí
para a família idealizada por Ana Maria Machado (Palavra de honra.
Rio: Nova Fronteira, 2005) a distância literária é menor do que
pensaríamos. É um romance idílico e açucarado, cheio de personagens
nobres e exemplares, no qual um menino pobre e analfabeto, imigrando
de Portugal, constrói enorme fortuna à custa do trabalho e da
honradez. Diga-se que revelava qualidades nativas excepcionais:
basta dizer que, desembarcando no Rio sem encontrar a pessoa que
deveria esperá-lo, não manifesta a inquietação normal nas
circunstâncias. Depois de algum tempo à espera ali no cais, o menino
pôs às costas seu saco de lona e resolveu caminhar um pouco pelas
redondezas deliciando-se com a inevitável nota folclórica: negras de
turbante, em roupas claras, acocoradas em esteiras, debaixo de
imensos guarda-pós, pelo meio de frutas e legumes que José jamais
vira antes. Outras a amamentar seus miúdos no meio da rua ou a
carregar os filhos às costas, enganchados nos quadris. (...)
Mercadores de cuias e cabaças feitas de um vegetal desconhecido.
Cerâmicas rústicas amontoadas: potes, vasos, jarras, alguidares e
estranhas garrafas bojudas a que chamavam moringas (...), etc.,
etc..
Milagre! Uma família desconhecida
resolve abrigá-lo, confirmando a proverbial hospitalidade carioca:
ao descobrir o endereço do negociante em Petrópolis a quem vinha
recomendado, mete-o sozinho na barca e no trem, para chegar afinal
ao seu destino, onde, por prodígios não menores, acaba por localizar
o correspondente na cidade desconhecida e, com o passar do tempo,
amealha grande fortuna, adquirindo um sítio nos arredores: “Terra
fértil, em lugar ensolarado de boa aguada, nem precisava cuidados
especiais de rega. Em poucas semanas, José contratou um empregado
que cuidava dos canteiros quando ele não podia estar presente
(...)”. Era no tempo em que o presidente da República saia a pé e
desacompanhado para fazer compras, inclusive na loja de ferramentas
do afortunado José: verificando que recebera mais troco do que o
devido, o presidente voltou do caminho para devolvê-lo ao não menos
honesto comerciante. É de restabelecer a fé na humanidade!
Para retornar à “real realidade”, como
dizia Eça de Queiroz, deve-se ler o romance satírico de Brasília,
cidade que, para além da retórica retumbante de Malraux, gosta de
inspirar sátiras, irresistíveis (Ruy Fabiano. Profanação. São Paulo:
A Girafa, 2005). Estamos no “reino da aparência. O espectador, tal
como no teatro, acabava conduzido pelos atores a um mundo de gestos,
máscaras e liturgias, onde o real era apenas um ingrediente
coreográfico. Ali, desfilava o país oficial, com seu impressionante
séquito de calvos, obesos, magros, estrábicos e descabelados”. Obra
menor, romance da política com o p pequeno, tem qualidades
narrativas sem a grandeza literária que poderá um dia produzir o
romance político brasileiro com P maiúsculo. |