Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Obras menores


14.05.2005

As obras menores não são necessariamente inferiores ou desprezíveis, havendo mesmo as que se tornaram clássicas da espécie, como, por exemplo, “A princesa de Clèves” (1678), transição do romance “precioso” seiscentista para o que afinal se configurou no século XIV. Sendo dois os vetores mutuamente complementares do julgamento crítico — a qualidade e a grandeza — as obras menores dignas de consideração só satisfazem ao primeiro deles, sem alcançar o plano e a estatura das obras-primas indiscutíveis. A qualidade mede-se por estalões quase artesanais ou técnicos: perfeição e beleza do estilo, arquitetura narrativa, originalidade da história, enquanto a grandeza responde a outro quadro de valores: análise psicológica profunda, testemunho do homem, inserção em temas históricos, conflitos de personalidades, além, bem entendido, do elemento de tragédia ou fatalidade, implícito no destino.

Tudo isso pressupõe o desenvolvimento da narrativa na extensão imposta pela matéria: não se trata do volume físico, mas sempre é certo que “Guerra e paz” não poderia ter sido escrito em 120 páginas. Sem levar a idéia ao absurdo polêmico, as obras menores são também “menores” em extensão, dadas a temática simples e a exposição retilínea por definição, enquanto as outras desenvolvem-se “em rosácea”, unificadas em torno de um núcleo gerador, como centro de convergência e irradiação. O romance de Marcelo Carneiro da Cunha (O nosso juiz. Rio: Record, 2004) foi construído pelo modelo, deliberado ou acidental, da peça de Thornton Wilder, “Nossa cidade” (1938, filme de Sam Wood em 1940), no qual um contra-regra aqui representado pelo escrivão Antônio descreve e comenta a vida da “cidade pequena, onde nenhum infortúnio consegue passar despercebido, nenhuma questão individual permanece individual por mais tempo do que alguém leva para quebrar a promessa de silêncio feita por quem nunca pretendeu cumprir a quem nunca realmente acreditou que ela pudesse ser cumprida, não em São João, não ao que, ao menos”.

A história e os pequenos e grandes dramas da vida cotidiana giram em torno da chegada do primeiro juiz de direito, designado para inaugurar o foro local, em rivalidade com a cidade vizinha. Os habitantes precisavam vencer um constrangedor complexo de inferioridade: “O clima da serra tornou São João fria demais para ser invadida por migrantes do Norte, remota demais para receber funcionários públicos, estéril demais para a maior parte das agriculturas, pobre demais para chamar aventureiros e pequena demais para interessar quem quisesse mudanças de qualquer tipo. O século XX não tinha sido um incômodo até então, e a vida seguia o ritmo que a maioria da população considerava o ideal, em geral por desconhecer por completo qualquer outro”.

Era impossível entender São João “sem entender o que representa Campos da Serra, a cidade mais próxima de nós, infelizmente próxima, segundo os moradores daqui, que gostavam de muitos mais quilômetros de lama entre nós e os gringos. (...) Cidade de imigrantes italianos, nem mesmo brasileiros de verdade, vivendo no meio da sujeira de uma fábrica de celulose e bebendo água de um rio depois de ele já ter passado por umas cinco outras localidades, coisa que gente decente nenhuma faria, da mesma forma que a gente decente de São João se quedava diante do incompreensível orgulho dos gringos pelas indústrias deles (...).”

É nesse quadro que transcorre o dia-a-dia de São João, com os seus “tipos” urbanos, paixões e crimes, episódios tenebrosos do passado, rivalidades e suspeitas, em suma, o ambiente convencional da “cidade pequena” estereotipada. Daí para a família idealizada por Ana Maria Machado (Palavra de honra. Rio: Nova Fronteira, 2005) a distância literária é menor do que pensaríamos. É um romance idílico e açucarado, cheio de personagens nobres e exemplares, no qual um menino pobre e analfabeto, imigrando de Portugal, constrói enorme fortuna à custa do trabalho e da honradez. Diga-se que revelava qualidades nativas excepcionais: basta dizer que, desembarcando no Rio sem encontrar a pessoa que deveria esperá-lo, não manifesta a inquietação normal nas circunstâncias. Depois de algum tempo à espera ali no cais, o menino pôs às costas seu saco de lona e resolveu caminhar um pouco pelas redondezas deliciando-se com a inevitável nota folclórica: negras de turbante, em roupas claras, acocoradas em esteiras, debaixo de imensos guarda-pós, pelo meio de frutas e legumes que José jamais vira antes. Outras a amamentar seus miúdos no meio da rua ou a carregar os filhos às costas, enganchados nos quadris. (...) Mercadores de cuias e cabaças feitas de um vegetal desconhecido. Cerâmicas rústicas amontoadas: potes, vasos, jarras, alguidares e estranhas garrafas bojudas a que chamavam moringas (...), etc., etc..

Milagre! Uma família desconhecida resolve abrigá-lo, confirmando a proverbial hospitalidade carioca: ao descobrir o endereço do negociante em Petrópolis a quem vinha recomendado, mete-o sozinho na barca e no trem, para chegar afinal ao seu destino, onde, por prodígios não menores, acaba por localizar o correspondente na cidade desconhecida e, com o passar do tempo, amealha grande fortuna, adquirindo um sítio nos arredores: “Terra fértil, em lugar ensolarado de boa aguada, nem precisava cuidados especiais de rega. Em poucas semanas, José contratou um empregado que cuidava dos canteiros quando ele não podia estar presente (...)”. Era no tempo em que o presidente da República saia a pé e desacompanhado para fazer compras, inclusive na loja de ferramentas do afortunado José: verificando que recebera mais troco do que o devido, o presidente voltou do caminho para devolvê-lo ao não menos honesto comerciante. É de restabelecer a fé na humanidade!

Para retornar à “real realidade”, como dizia Eça de Queiroz, deve-se ler o romance satírico de Brasília, cidade que, para além da retórica retumbante de Malraux, gosta de inspirar sátiras, irresistíveis (Ruy Fabiano. Profanação. São Paulo: A Girafa, 2005). Estamos no “reino da aparência. O espectador, tal como no teatro, acabava conduzido pelos atores a um mundo de gestos, máscaras e liturgias, onde o real era apenas um ingrediente coreográfico. Ali, desfilava o país oficial, com seu impressionante séquito de calvos, obesos, magros, estrábicos e descabelados”. Obra menor, romance da política com o p pequeno, tem qualidades narrativas sem a grandeza literária que poderá um dia produzir o romance político brasileiro com P maiúsculo.

 
 

 

 

 

 

10/01/2006