Escrever sobre televisão é,
inevitavelmente, repetir lugares-comuns, embora confirmados, de ano
para ano, por novas estatísticas e gráficos de desenvolvimento.
Exceção feita das idéias realmente enriquecedoras de Marshall
McLuhan, é o que acontece na enorme bibliografia existente, ela
própria condenada a tornar-se obsoleta a curto prazo – e agora no
livro de Sérgio Miceli (A noite da madrinha e outros ensaios sobre o
éter nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005).
Dos programas de auditório, que
conferiram péssima reputação ao adjetivo “popular”, passando pelo
noticiário e projetos de cultura e de interesse público, sem
esquecer as telenovelas, essa literatura das famílias, a televisão
não é apenas uma “extensão dos nossos sentidos” e a criadora da
aldeia global, mas um sentido acrescido aos existentes, agindo
cataliticamente sobre os demais. Chegando depois da “galáxia de
Gutenberg”, de natureza linear e seqüencial, a civilização
eletrônica de natureza circular não a substitui, mas determinou o
que, à primeira vista, parece uma fragmentação do público: “A
demanda por bens e mensagens veiculados pela indústria cultural
brasileira é função sobretudo do estágio em que se encontra a
distribuição de renda, de escolaridade e de capital cultural nos
diferentes níveis de hierarquia social. E o consumo dos produtos da
indústria cultural obedece à mesma lógica social excludente segundo
a qual quanto mais destituído dos pontos de vista material e
escolar, tanto maior o grau de exposição às mensagens transmitidas
pela televisão, mormente nos horários de pico (...). Ao contrário,
quanto maior o nível de instrução, tanto mais elevado o consumo de
jornais e revistas”.
Na verdade, há pouca “lógica” nessas
faixas de comportamento. Se se pode pensar que um segmento
importante do público prefere as novelas e não tem maior interesse
pelas notícias do dia (e vice-versa), parece evidente que a
televisão tende a homogeneizar em nova entidade o que se pode ter
como audiência coletiva. É certo que ela oferece de imediato, com
variável acréscimo emocional, as notícias que os jornais só
publicarão no dia seguinte, mas é também inegável que o noticiário
jornalístico abre espaço para pormenores incompatíveis com os 23
minutos dos jornais falados. Há contaminações recíprocas: por um
lado, os jornais estão cada vez mais substituindo o texto pela
imagem e, por outro lado, a televisão está avançando
desproporcionalmente sobre o território da imprensa escrita: as
emissoras estão se multiplicando, enquanto os grandes jornais
diminuem em número.
Nessas perspectivas, o tópico mais
sugestivo refere-se às relações da televisão com a vida política e,
nomeadamente, com o processo eleitoral. Existe, mesmo, o aforismo
mnemônico segundo o qual “sem televisão não há eleição”, não só
porque os comícios dispensam a presença física dos candidatos, mas,
ainda, pela força sugestiva da “imagem” contraposta ao “discurso”,
ou seja, a passagem do abstrato para o concreto em termos
sensoriais. As eleições decidem-se na televisão, não raro pelas
circunstâncias mais fortuitas: “O que está em jogo no debate (...)
não é a vida pregressa, evidentemente (...) não são as alusões aos
pontos fracos de quaisquer dos candidatos, também não é o programa
do partido, não é o passado de cada partido (...) o que decide o
debate é uma avaliação do desempenho a partir de pequeninos lances e
registros que têm a ver com o uso das mãos, a ‘espontaneidade’, a
‘naturalidade’, o ‘artificialismo’, têm a ver com a rapidez e a
eficácia da resposta em termos de timing do próprio veículo (...)”.
Alguns segundos de hesitação, observa Sérgio Miceli, “podem parecer
uma eternidade”.
Candidatos que transpiram, revelando
ansiedade ou insegurança, outros, de barba cerrada,
catastroficamente ampliada no vídeo, parecem cansados e vencidos. É
disso que depende o destino das nações. Não é segredo que os
“debates” não se resolvem pelo que se debate: são situações
emocionais e suspeitamente demagógicas, cujo “resultado” é avaliado
por apreciações puramente subjetivas, quando não partidárias, por
parte do público. Sérgio Miceli lembra, a esse propósito, um
episódio das eleições paulistas: “A imprensa pôde dizer no dia
seguinte: ‘o Covas ganhou o debate’. Mas não foi o Covas que ganhou
o debate, foi também o Afif que perdeu o debate (...) porque o que
acabou se sedimentando no plano propriamente visual provinha menos
da postura ofensiva do Covas dizendo: ‘Você sempre votou contra os
trabalhadores na Constituinte’ que da reação hesitante de Afif.
(...) Antes ser politicamente derrotado por conta da acusações que
lhe foram endereçadas (...) ele foi nocauteado pelo fato de ter se
mostrado acachapado, olhando para a câmera como se não tivesse
nenhuma resposta (...)”. Com pormenores e em situações diferentes, é
a história ao mesmo tempo dramática e ridícula de todos os debates,
exercícios de futilidade evidente, porque, no fundo, o resultado
está conhecido por antecipação.
Datando de 1984, o capítulo sobre a
situação de nossa indústria cultural, tem, já agora, interesse
apenas informativo, porque, nessa matéria, os últimos 20 anos
conheceram modificações substanciais: a expressão mais comum nessa
área refere-se a equipamentos e recursos de “última geração”. A
divisão do trabalho, escreve Sérgio Miceli, “motivou mudanças
significativas nas arenas de exposição pública do sistema
político-partidário, alterando as relações de força entre os grandes
empreendimentos e instituições aí atuantes, além de ter afetado
consideravelmente a distribuição de poder e influência entre os
grupos econômicos que lideram os principais ramos da indústria
cultural”.
Trata-se de um sistema que se alimenta
por solipsismo, se essa for a palavra exata: o poder da televisão
confere poder às empresas que a exploram, assim como as empresas
tiram da televisão o seu poder e influência. Já em 1979, diz Sérgio
Miceli, “o Brasil ocupava o sétimo lugar em gastos com publicidade e
o quinto lugar em despesas de propaganda e televisão”. Os
“patrocinadores” só patrocinam programas de grande audiência, com o
que adquirem poder suficiente para determinar o cancelamento dos
menos afortunados. É um círculo vicioso extremamente lucrativo,
aliás inevitável, no qual, afinal de contas, (quase) todos saem
ganhando. |