Na modesta escala nacional, e até
municipal, também tivemos o nosso Céline ou o nosso Henry Miller na
pessoa de José Carlos Oliveira (Diário selvagem: o Brasil na mira de
um escritor atrevido e inconformista, e O homem na varanda do
Antonio’s: crônicas da boemia carioca nos agitados anos 60/70. Org.
Jason Tércio. Rio: Civilização Brasileira, 2004/2005). Estamos
longe, bem entendido, de Henri Murger, num livro que, segundo o
organizador, “comporta dois níveis de leitura: é a perambulação de
um homem, desde a juventude à maturidade, pelos bares, restaurantes,
boates e festas mais interessantes da Zona Sul do Rio de Janeiro,
envolvendo-se em situações alegres, dramáticas, poéticas, patéticas.
É também a história da vida boêmia num período de grande
efervescência cultural no país, especificamente o cotidiano da
boemia artística e intelectual, narrado pelo seu mais qualificado
porta-voz, José Carlos (Carlinhos) Oliveira”.
O “Diário selvagem” situa-se, ao mesmo
tempo, na literatura maldita, na incoercível tendência para a
coprologia desafiadora, nos ressentimentos pessoais e no profundo
sentimento de malogro existencial: ele vivia o contraste pungente
entre o que poderia ter sido e o que efetivamente era, entre as
compensações da popularidade fácil e a obscura convicção da própria
efemeridade. Literariamente, o organizador situa-o na numerosa
família dos rebeldes sem causa: “O resultado tem o sabor de um
coquetel feito com o erotismo escancarado de Henry Miller, a
marginalidade transcendente de Bukowski, a náusea existencial de
Sartre, a indignação moral de Lima Barreto, o dilema religioso de
Dostoievski e o memorialismo mudado de Proust”.
Façamos a parte dos excessos retóricos
e dos paralelos simplistas, para nada dizer dos respectivos impactos
na grande literatura, resta que seu projeto ou as suas veleidades
sempre foram maiores que as realizações. Seja como for, diz ainda
Jason Tércio, “sua estirpe é a dos artistas outsiders, marginais
talentosos porém autodestrutivos, independentemente de época e da
avaliação estética de suas obras — François Villon, Allan Poe,
Artaud, Modigliani, Van Gogh, Byron, Oscar Wilde, Fagundes Varela,
Lima Barreto, Jean Genet, Jack Kerouac, Jim Morrison, Janis Joplin,
Basquiat, Torquato Neto, Brian Jones, Jimi Hendrix, Cazuza, Kurt
Cobain... É o arquétipo da verdadeira transgressão, que mistura vida
e arte, num processo não raro trágico que, no caso de Carlinhos,
teve elementos de comédia”.
Ele mesmo se classificava como
“surrealista por temperamento, anarquista por indisciplina de berço,
boêmio por amor à vagabundagem, agregado à elite pensante por
acaso”, família espiritual que contesta os códigos aceitos pela
prática sardônica de outros códigos, não menos convencionais e
arbitrários. É a transgressão como atitude e, por isso mesmo, nada
transgressora, buscando o aplauso dos que a aceitam, não como
literatura, mas como transgressão. No “Diário selvagem”, é mais do
que perceptível a pulsão autodestrutiva, “punindo-se” por estar
ocupando um lugar que obscuramente sabia não lhe pertencer: “Posso
escrever um romance autobiográfico de 500 páginas, começando sempre
assim, capítulo por capítulo: ‘Ontem dormi tarde, bebi muito’. E por
que não fazê-lo? Ao longo das páginas talvez se esclareça a origem
dessa destruição, esse namoro com a morte que é, literalmente, o meu
pão de cada dia. A 50 metros da minha dose de uísque alguém dá um
tiro na cabeça; o meu suicídio é lento e relutante. Venho da classe
mais pobre, da miséria, passando por uma breve classe média
solidamente agarrada às suas mesquinhas esperanças, erguida ao nível
da risonha demência que encontramos descrita em novelas baratas”.
Esse “romance autobiográfico” ele de
fato o escreveu (sendo, como é, autobiográfica toda a sua
literatura) e intitula-se “Um novo animal na floresta” (1981). O
autor fez de si mesmo, ao longo dos anos, observei àquela altura, o
protótipo do herói tenebroso e romântico, perdido no álcool e nas
fronteiras da loucura, fascinante pela existência boêmia, desafiador
intemerato de todas as convenções burguesas (que adoram ser
desafiadas), irresistível amante de todas as mulheres, inclusive
estrelas de renome internacional e que atravessa os dias, em
particular as “noites intermináveis”, uma de suas expressões
favoritas, como o misterioso paladino de não se sabe que virtudes
redimidoras. É o amigo íntimo dos marginais e desordeiros,
cortejado, entretanto, pelos pilares da sociedade e por importantes
órgãos do jornalismo e também a eterna promessa de romancista jamais
realizada, distraído, por enquanto, nas suas rememorações de
memoráveis bebedeiras, algo constrangido na inutilidade do seu papel
e desejando, por isso mesmo, participar de forma heróica (aspiração
tão burguesa quanto antiburguesa), no que se identificavam, sem
percebê-lo, os irmãos inimigos da subversão e da repressão, história
trágica vivida, não na ficção, mas na realidade, pela juventude
brasileira dos anos 60.
É possível ver na existência efêmera
dos bares da moda qualquer coisa como o emblema da vida sempre
insatisfeita dos boêmios: “Não é fácil determinar a razão pela qual
um grupo de pessoas se desloca de um bar para outro. (...) Em 1950
todos se reuniam no Vermelhinho e no 13 andar da ABI. Pouco tempo
depois foram para o Vilarinho, algumas quadras além. Mais alguns
anos, e eis todos eles no Alcazar, já em Copacabana. O declínio do
Alcazar coincidiu com o apogeu da varanda do Hotel Miramar. Foi só
então que descobrimos Ipanema, com o Veloso perto da casa de Rubem
Braga e o Zeppelim perto da casa de todo mundo. Simultaneamente
surgiram no Leblon o Real Astoria e o Maracujina. (...)
Inexplicavelmente, o Antonio’s entra em decadência e sua maravilhosa
clientela se refugia no Nino e no Mário. A turma da pesada pede
abrigo ao Calil e ao Degrau, que por sua vez acabaram com o breve
êxito do Álvaro’s. Tudo isso parece obedecer a um estranho fatalismo
que ainda nos obrigará a ir beber chope em Santos, no princípio da
noite...”.
Sabe-se que os cafés literários são
instituições congênitas com o aparecimento e desenvolvimento dos
grandes centros de cultura, muitas vezes exercendo importante papel
histórico: é neles que se preparou boa parte da Revolução Francesa,
assim como os de Greenwich Village concentraram por um momento a
vida intelectual e artística de Nova York. A julgar pelo que escreve
José Carlos Oliveira, os do Rio tiveram uma função antes dispersiva
e hedonística. Não há prova mais constrangedora de desclassificação
social do que ser visto em um bar que saiu da moda, assim como nada
se compara à vaidade de estar entre os primeiros dos novos
endereços. |