Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Páginas de história

Jornal do Brasil
24.09.2005

 

Dentre os estudos reunidos por Alberto da Costa e Silva em Das mãos do oleiro: aproximações (Rio: Nova Fronteira, 2005), há o capítulo sobre o triângulo civilizacional em que se inscrevem Brasil, Portugal e África, com os mal-entendidos correspondentes. De uma forma geral, pode-se dizer que todas as relações entre povos diversos condicionam-se por mal-entendidos, alguns propositais e outros involuntários, para nada dizer dos inevitáveis, mas, no que nos concerne, trata-se de questão entre todas específica. Há o mal-entendido do brasileiro “que se decepciona e até se irrita com o seu amabilíssimo cicerone português, porque este insiste em mostrar-lhe as auto-estradas, as pontes suspensas, os edifícios modernos e até os centros comerciais, quando o que ele quer ver é o Portugal de sua saudade, uma saudade herdada de seus avós ou adquirida nas leituras de menino e moço: as aldeias, as quintas, os vinhedos e os lagares, além, naturalmente, do Terreiro do Paço, das ruas estreitas de Lisboa e do Porto [...]”.

O português, de seu lado, “espera do Brasil a realização das utopias. Emociona-se com o Portugal que reencontra em terras brasileiras, mas nelas busca muito mais que isso: busca um futuro imaginado [...] – futuro agora identificado com o mito da unidade lingüística (pressupondo todas as outras). É possível que se repita, no caso, o que se diz a respeito dos Estados Unidos e da Inglaterra: trata-se de dois países separados pela língua comum, a língua que encobre e dissimula todas as diferenças e até os antagonismos. O projeto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é mais do que uma generosa aspiração – é um programa político que contraria, antes de mais nada, o tropismo natural das civilizações, a lei histórica da evolução, isto é, partem da unidade para a diversidade e do simples para o complexo, do idêntico para o diferenciado: basta acompanhar a história das línguas neolatinas desde as suas origens.

Embora os meios modernos de comunicação pareçam contrariar ou, pelo menos, corrigir essa tendência, sempre é certo que as civilizações caminham por linhas divergentes.

É ilusória, para começar, a idéia de que exista um “mundo onde se fala português”, para lembrar o conhecido título de Maria Archer: “O primeiro desapontamento nos virá ao descobrirmos que nem todos nesses países usam o português como segundo idioma, e que não são poucos – e, em alguns deles, pouquíssimos – os que o têm como língua materna. Em Cabo Verde e São Tomé, falam-se em casa e na rua preponderantemente os respectivos crioulos. Em Angola, só uma minoria, embora já considerável nas cidades e em visível crescimento, utiliza o português. E na Guiné continua minguado o número dos que nele habitualmente se expressam. [...] De cada cinco pessoas que falam português, quatro vivem no Brasil [...]” – de forma que, mesmo considerando que o seu uso ainda se multiplique nos demais países, “de todas as nações que se classificam como lusófonas, somente o Brasil reúnem as condições para, a médio prazo, se afirmar como potência mundial”.

Há, mesmo, sinais ominosos: cedendo à atração planetária da África do Sul, Moçambique, a que Costa e Silva não se refere nesse contexto, adotou há pouco o inglês como língua oficial, o que, aliás, se explica em termos de geopolítica: Moçambique “pertence a um outro oceano e sempre esteve mais próximo da Índia e do mundo árabe do que de nós”. É exemplo elementar da inevitável fragmentação dos impérios, mas não é o único, havendo outros mais sutis, como observa o autor: o sentimento de que Portugal e Brasil “estão unidos não só pelo idioma e por antepassados comuns, mas sobretudo pelo reforçar, a cada geração, dos laços de parentesco, poderá vir a diluir-se à medida que envelhece, no Brasil, a comunidade dos nascidos em Portugal e não são preenchidos por novos imigrantes os vazios nela abertos pela morte. [...] O número de brasileiros que se radicam em Portugal é, hoje, três vezes superior ao de cinco ou quatro décadas passada”. É, como já se disse, a volta das caravelas, sendo de notar, entretanto, que, na atualidade, as “caravelas” voltam de países europeus (França, Alemanha, Bélica, Luxemburgo), onde se situam os mercados de trabalho.

O “brasileiro” caricatural, imigrante enriquecido de torna-viagem, tornou-se o “francês” ou o “alemão”, portador de outras experiências. Há, também, na África, o neo-colonialismo dos próprios africanos, que, tendo estudado no exterior, voltam com um programa de modernização e conseqüente repúdio dos valores tradicionais: “Desse desdém deixaram-se impregnar muitos dos que compuseram as elites políticas que assumiram o poder após as independências. Formados nas duas Alemanhas, na China, nos Estados Unidos, na França, na Grã-Bretanha, na Checoslováquia ou na União Soviética, eles não hesitaram em cortar aqui, em torcer ali, em comprimir acolá, para ajustar, deformando, as estruturas sociais de seus países às idéias de que vinham imbuídos”.

Na verdade, o “mundo que o português criou”, para lembrar o ensaio polêmico de Gilberto Freyre, é o mundo que os brasileiros criaram e continuam criando, verdade que também se aplica, claro está, aos países africanos e asiáticos, cada um deles com suas peculiaridades. Criaram, como seria inevitável, tornando-o cada vez mais diferente de Portugal ou da figura igualmente arbitrária que acabou se cristalizando nas reconstruções históricas e simplificações escolares. Muitas das concepções e do vocabulário de Casa Grande & Senzala incorporaram-se ao dia-a-dia brasileiro, observa Costa e Silva, sendo, por isso, do maior interesse o que escreve a propósito da visita de Gilberto Freyre ao que então eram os eufemisticamente chamados Territórios de Ultramar. É uma história de ligações perigosas, provocando surpresa entre os seus leitores, ao depararem “com uma dúzia de insistências, em quem fôra um tenaz opositor do fascismo e do Estado Novo brasileiro, o elogio a Salazar e a justificação de seu regime político”, cabendo acrescentar, com Alberto da Costa e Silva, que ele “não foi o único intelectual brasileiro a deixar-se seduzir por Salazar”. Como seria de esperar e sempre acontece nas visitas “oficiais”, ele viu da África portuguesa apenas o que lhe mostraram: “A impressão que nos fica é a de que dele não se afastaram um só momento as autoridades coloniais. [...] Tanto abanaram os leques, em Angola e em Cabo Verde, na frente dos olhos de Gilberto Freyre, que este pouco viu do autêntico daquelas terras”. Claro, ele não era homem para se deixar enganar, apresentando-se depois como criador de uma nova ciência, a Lusotropicologia, tentativa de enobrecer uma aventura que ameaçava dissolver-se na rotina dos costumes totalitários.
 

Link para a página de Alberto da Costa e Silva

 

 

 

 

 

13/11/2007