Dentre os estudos reunidos por Alberto
da Costa e Silva em Das mãos do oleiro: aproximações (Rio: Nova
Fronteira, 2005), há o capítulo sobre o triângulo civilizacional em
que se inscrevem Brasil, Portugal e África, com os mal-entendidos
correspondentes. De uma forma geral, pode-se dizer que todas as
relações entre povos diversos condicionam-se por mal-entendidos,
alguns propositais e outros involuntários, para nada dizer dos
inevitáveis, mas, no que nos concerne, trata-se de questão entre
todas específica. Há o mal-entendido do brasileiro “que se
decepciona e até se irrita com o seu amabilíssimo cicerone
português, porque este insiste em mostrar-lhe as auto-estradas, as
pontes suspensas, os edifícios modernos e até os centros comerciais,
quando o que ele quer ver é o Portugal de sua saudade, uma saudade
herdada de seus avós ou adquirida nas leituras de menino e moço: as
aldeias, as quintas, os vinhedos e os lagares, além, naturalmente,
do Terreiro do Paço, das ruas estreitas de Lisboa e do Porto [...]”.
O português, de seu lado, “espera do
Brasil a realização das utopias. Emociona-se com o Portugal que
reencontra em terras brasileiras, mas nelas busca muito mais que
isso: busca um futuro imaginado [...] – futuro agora identificado
com o mito da unidade lingüística (pressupondo todas as outras). É
possível que se repita, no caso, o que se diz a respeito dos Estados
Unidos e da Inglaterra: trata-se de dois países separados pela
língua comum, a língua que encobre e dissimula todas as diferenças e
até os antagonismos. O projeto da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa é mais do que uma generosa aspiração – é um programa
político que contraria, antes de mais nada, o tropismo natural das
civilizações, a lei histórica da evolução, isto é, partem da unidade
para a diversidade e do simples para o complexo, do idêntico para o
diferenciado: basta acompanhar a história das línguas neolatinas
desde as suas origens.
Embora os meios modernos de
comunicação pareçam contrariar ou, pelo menos, corrigir essa
tendência, sempre é certo que as civilizações caminham por linhas
divergentes.
É ilusória, para começar, a idéia de
que exista um “mundo onde se fala português”, para lembrar o
conhecido título de Maria Archer: “O primeiro desapontamento nos
virá ao descobrirmos que nem todos nesses países usam o português
como segundo idioma, e que não são poucos – e, em alguns deles,
pouquíssimos – os que o têm como língua materna. Em Cabo Verde e São
Tomé, falam-se em casa e na rua preponderantemente os respectivos
crioulos. Em Angola, só uma minoria, embora já considerável nas
cidades e em visível crescimento, utiliza o português. E na Guiné
continua minguado o número dos que nele habitualmente se expressam.
[...] De cada cinco pessoas que falam português, quatro vivem no
Brasil [...]” – de forma que, mesmo considerando que o seu uso ainda
se multiplique nos demais países, “de todas as nações que se
classificam como lusófonas, somente o Brasil reúnem as condições
para, a médio prazo, se afirmar como potência mundial”.
Há, mesmo, sinais ominosos: cedendo à
atração planetária da África do Sul, Moçambique, a que Costa e Silva
não se refere nesse contexto, adotou há pouco o inglês como língua
oficial, o que, aliás, se explica em termos de geopolítica:
Moçambique “pertence a um outro oceano e sempre esteve mais próximo
da Índia e do mundo árabe do que de nós”. É exemplo elementar da
inevitável fragmentação dos impérios, mas não é o único, havendo
outros mais sutis, como observa o autor: o sentimento de que
Portugal e Brasil “estão unidos não só pelo idioma e por
antepassados comuns, mas sobretudo pelo reforçar, a cada geração,
dos laços de parentesco, poderá vir a diluir-se à medida que
envelhece, no Brasil, a comunidade dos nascidos em Portugal e não
são preenchidos por novos imigrantes os vazios nela abertos pela
morte. [...] O número de brasileiros que se radicam em Portugal é,
hoje, três vezes superior ao de cinco ou quatro décadas passada”. É,
como já se disse, a volta das caravelas, sendo de notar, entretanto,
que, na atualidade, as “caravelas” voltam de países europeus
(França, Alemanha, Bélica, Luxemburgo), onde se situam os mercados
de trabalho.
O “brasileiro” caricatural, imigrante
enriquecido de torna-viagem, tornou-se o “francês” ou o “alemão”,
portador de outras experiências. Há, também, na África, o
neo-colonialismo dos próprios africanos, que, tendo estudado no
exterior, voltam com um programa de modernização e conseqüente
repúdio dos valores tradicionais: “Desse desdém deixaram-se
impregnar muitos dos que compuseram as elites políticas que
assumiram o poder após as independências. Formados nas duas
Alemanhas, na China, nos Estados Unidos, na França, na Grã-Bretanha,
na Checoslováquia ou na União Soviética, eles não hesitaram em
cortar aqui, em torcer ali, em comprimir acolá, para ajustar,
deformando, as estruturas sociais de seus países às idéias de que
vinham imbuídos”.
Na verdade, o “mundo que o português
criou”, para lembrar o ensaio polêmico de Gilberto Freyre, é o mundo
que os brasileiros criaram e continuam criando, verdade que também
se aplica, claro está, aos países africanos e asiáticos, cada um
deles com suas peculiaridades. Criaram, como seria inevitável,
tornando-o cada vez mais diferente de Portugal ou da figura
igualmente arbitrária que acabou se cristalizando nas reconstruções
históricas e simplificações escolares. Muitas das concepções e do
vocabulário de Casa Grande & Senzala incorporaram-se ao dia-a-dia
brasileiro, observa Costa e Silva, sendo, por isso, do maior
interesse o que escreve a propósito da visita de Gilberto Freyre ao
que então eram os eufemisticamente chamados Territórios de Ultramar.
É uma história de ligações perigosas, provocando surpresa entre os
seus leitores, ao depararem “com uma dúzia de insistências, em quem
fôra um tenaz opositor do fascismo e do Estado Novo brasileiro, o
elogio a Salazar e a justificação de seu regime político”, cabendo
acrescentar, com Alberto da Costa e Silva, que ele “não foi o único
intelectual brasileiro a deixar-se seduzir por Salazar”. Como seria
de esperar e sempre acontece nas visitas “oficiais”, ele viu da
África portuguesa apenas o que lhe mostraram: “A impressão que nos
fica é a de que dele não se afastaram um só momento as autoridades
coloniais. [...] Tanto abanaram os leques, em Angola e em Cabo
Verde, na frente dos olhos de Gilberto Freyre, que este pouco viu do
autêntico daquelas terras”. Claro, ele não era homem para se deixar
enganar, apresentando-se depois como criador de uma nova ciência, a
Lusotropicologia, tentativa de enobrecer uma aventura que ameaçava
dissolver-se na rotina dos costumes totalitários.
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