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Jornal do Conto

 

 

Wladimir Saldanha


 

Evelina e seu irmão

 

Pur di una cosa ci affidi,
padre, e questa è: che un poco del tuo dono
sia passato per sempre nelle sillabe
che rechiamo con noi, api ronzanti.
                                    Montale.


 

Vivíamos assim. Nunca se acabava a casa. Primeiro Pai fez a sala e o quarto dele, éramos pequenas. Nós duas, eu e minha irmã Laís. Depois ele fez a cozinha, porque Mãe cozinhava num forno a lenha, improvisado no quintal. Imagine se cozinhar a carvão nos tempos de hoje. Pois era assim. Isso eu não vi: ela conta. E depois da sala e do quarto e da cozinha, era pra fazer os quartos da gente – meu e de Laís. Um de cada. A gente imaginava de quem seria o primeiro e um dia chegamos a brigar. O tufo de cabelo de Laís na minha mão, aquele cabelo loiro dela. Mas quando Pai viu a briga e soube o porquê, ficou furioso e disse que o quarto seria um só, de castigo, pra gente aprender. Que a convivência harmônica era a grande lição das abelhas. Sim, não posso esquecer de falar das abelhas.

Abelhas eram muitas. Entretanto, pareciam uma única, em todo lugar. Aquela comum, da bunda amarela e preta. Pai não admitia que se matasse abelha. Quando a gente era pequena, lembro que Mãe cobria a comida na mesa com aqueles paninhos rendados. Mas depois os paninhos sumiram. Não sei bem como sumiram. Um dia sumiram. E as abelhas vinham sempre, no café, no almoço, no jantar. Tinham o xarope delas, no quintal – pensa que era só flor? –, e ainda vinham sempre. Passeavam pela mesa. Paravam de repente, cutucando uma florzinha da toalha. Vendo que não saía nada, caminhavam para um pires, um prato. Adoram fruta. A rodela de banana do café da manhã. E comida com molho. Escorregavam nas travessas de vidro e iam boiar batendo as asas.

Pai se desesperava. Salvava a abelhinha com o cabo do talher.

A harmonia é a grande lição das abelhas, dizia. Aí eu perguntei se na colméia era assim, todo mundo amontoado. Eu bem sabia que não era, cada bebê tinha lá seu cantinho, aquele favo encerado. Mas aí falou que outra lição das abelhas é o sacrifício. A vida para o trabalho, como a dele. Que, se não tinha erguido ainda o quarto de nós duas, era só por causa da despesa grande, inclusive a de nossa criação: escola, roupa, remédio. Quanto à comida, ainda tínhamos de dar graças a Deus pelo mel, esse alimento. E a própolis. A geléia real e até a cera - lembrem-se da cera, estou ouvindo ele dizer... Mas como esquecer da cera? Aquela ardência na pele e, depois que calmava, Mãe puxando a crosta cheia de pêlos. Minava lágrima no canto do olho. Ficava depois aquela placa vermelha nos sovacos, manchas nas pernas. Uma hora sumia tudo. E a gente lisinha e durava muito tempo sem precisar.

O que me dói ainda é pensar que as abelhas, sabe?, elas tinham direito a tudo. Elas precisavam de tudo. E ele adorava, atendia. Primeiro foi o tal alimentador, com xarope: dizia que melhorava a qualidade do mel... Depois, formão, fumegador, centrifugador, decantador de mel... Mas você perguntasse de apiário! Ah, a coisa mais simples! Pai se entusiasmava, achando uma orelha... Queria logo que o sujeito lhe fizesse visita. Insistia. Quando conseguia convencer alguém, mandava Mãe limpar o macacão-reserva, melhor que o dele, mais novo. O de Pai vivia furando na costura do braço. Mãe cerzia a lona com agulha de tricô, uma luta. Brigava com Pai para usar o outro, ou comprar novo. Nada. E vinha a visita e ele tinha orgulho de levar nas abelhas, que moravam no fundo do quintal. Primeiro foi nuns tanques de água empilhados, depois ele adquiriu a estrutura própria, adequada.

Foi uma festa a mudança das abelhas.

Mas não era disso que eu estava falando, as abelhas eram só um exemplo. Queria dizer que você deve compreender essa questão do seu irmão, sabe? Cada pessoa tem lá suas manias, principalmente em se tratando de família. Veja meu caso. É verdade que eu me dava bem com Laís, mas essa história de nós não termos quarto era terrível. Se a gente brigasse, como você com o seu irmão, nem sei. Mas a gente tinha de dormir nos colchonetes na sala, todo dia pegar aqueles colchonetes dobrados no maleiro, desfazer o nó da fita, forrar o colchonete no chão. Ali, na poeira, embora Mãe fosse muito asseada. Mas com aquele ir-e-vir de Pai no quintal, era difícil, às vezes ele não batia o pé no capacho direito, deixava aquelas marcas de sola no chão... Usava uma bota para as abelhas. Estou lhe dizendo que as abelhas tinham direito a tudo.

Não, a mudança não foi difícil. Eu disse que foi difícil? Não, ao contrário. Nesse dia Pai nos deixou passar do marco da bananeira, porque precisava de nossa ajuda. Queria que fôssemos limpando e empilhando as antigas caixas d’água – falei que eram caixas d’água? Tanquinhos assim. Ele tirava a colméia com as mãos enluvadas, ajustava depois na estrutura nova. A estrutura nova, a Langstroth, ele mandou vir de São Paulo. Langs-troth. Era uma espécie de gaveteiro, onde se encaixavam as colméias. Nesse dia Pai ficou preto de abelhas, um homem-abelha. Tinha o fumegador, aquela fumaça pra calmar, mas não adiantava. A gente teve medo, Laís começou a chorar. Eu briguei com ela, perguntei a ela se ela não sabia que não podia fazer barulho. Sabe que abelha é sensível a barulho? E nesse dia estavam furiosas com a mudança.

Pai nos tinha deixado passar da marca da bananeira para lavar os tanques, porque, senão, uma abelha desgarrada poderia vir atrás dos tanques e avisar às outras, e viriam todas, porque as abelhas são muito organizadas e passam a notícia rápido, rápido. Tinha de lavar depressa... Ele surgia do meio da fumaça com aquele tanque na mão, o homem-abelha, andando parecendo um robô, com as pernas abertas. Você ri? Pai deixava a caixa vazia no meio do caminho. Eu corria pra pegar, porque ele tinha dito que era eu, Laís era menor, não tinha força, não sei. Ela estava no chafariz, depois da bananeira, sacudindo os dedos na torcida. A doida esquecia de tudo, que não podia gritar, sacudir então! Eu trazia a caixa correndo, as abelhas ali atrás, colocava debaixo da torneira (Laís já tinha aberto no máximo).

Na verdade as abelhas nunca nos picaram, nem a mim, nem a Laís. Mesmo nesse dia não nos picaram. Que, aliás, Pai até dizia das picadas que eram boas, faziam bem: veneno coisa nenhuma. Queria tratar as dores com a abelhinha segura numa pinça, pra ferroar nos “pontos vitais”; uma pessoa, falava, pode levar até catorze picadas! Claro que Mãe não topava essa loucura. Veja que a idéia da bananeira foi dela, não queria a gente metida com aqueles bichos... E só colaboramos com a mudança das abelhas porque Pai esperou pra fazer num dia em que Mãe não estava, tinha ido à cidade, acho.

Pois esse tempo todo passou a gente dormindo no chão da sala. Pensa que não era ruim? E como! Quantas vezes Laís acordava com renite. Aquela poeira que Mãe não conseguia vencer. E também as formigas, vinham uma e outra e davam aquela mordida em que se torcem, viram grãozinho preto. Mas não morrem, não. Formiga é o diabo, pior que abelha. Pai detesta formiga. Protegia as abelhas das formigas apoiando o apiário numas latas. Diz que formiga tem as mesmas qualidades da abelha, porém destrói a vida dos outros para viver na harmonia, na ordem. Então a ordem delas é a desordem do resto. Assim, mais ou menos como o que você está me contando do seu irmão.

Eu o que posso dizer é que queria me casar logo, logo, só pra deitar numa cama que fosse minha. A gente deitava na cama de Mãe durante o dia, mas não era a mesma coisa, melhor é de noite. E também Mãe não gostava de marcas na colcha, queria a colcha bem esticada: nem aquele círculo que o corpo deixa, quando se senta. Um dia proibiu a gente de sentar e só restou o sofá: sentar e deitar no sofá. Mas sofá é ruim de deitar, macio demais. Eu não sei você, mas eu gosto de um descanso mais duro. Aqueles colchonetes eram moles demais e eu vim descobrir que aquela dor nas costas era isso. Também Laís se queixava da mesma dor. Mãe passava um emplastro que tinham ensinado, à base de mel. A dor aliviava, mas hoje estou certa de que não era por causa daquilo, era somente porque passava o dia sem a gente deitar naquela pamonha de colchão.

Mas um dia me casei e a primeira coisa que fiz do enxoval foi comprar a cama. Depois, logo depois, o colchão. Como é caro, colchão! Meu colchão foi mais caro que a cama, acredita? Laís tinha que estudar e acabou vindo morar comigo. Arrumei pra ela o quartinho de empregada, ninguém pode mais ter empregada hoje em dia. Está na faculdade. Namorado firme, acho que dá casamento. Mas já pegou um pedaço da juventude dormindo na própria cama, no próprio quarto; diferente de mim, que foi a vida toda no chão, até casar. E as roupas. No tempo da casa de Pai, a gente tinha de guardar no armário deles... Duas gavetinhas. E as abelhas lá, com a Langstroth, o gaveteiro... Imagine isso, não ter onde guardar as roupas!
 

Continua lá, com Mãe e as abelhas. Aquilo é vício, Deus me livre. Hoje, não tolero nem cara de mel. Uma repulsa, err! Outro dia faltou açúcar e fui inventar de adoçar o mel com café, quer dizer, o café com mel. Como a gente fazia. Tenho sempre mel, ele manda sempre uns potes por Laís, que vai muito lá. Deus me livre, fiquei tonta, quase vomito. Acho que saturei.

Mas era o jeito dele, só sabia fazer aquilo, viver daquele jeito. Mãe também se acostumou; eu agüentei até quando pude. Tinha pressa em casar, casei com o primeiro namorado. Mas Almerindo é bom, graças a Deus, amo meu marido. Veja o que ele faz por minha irmã. Mas confesso que a questão do quarto contou muito.

Um dia você se forma e tem o seu trabalho e aí vai ficar tudo bem com seu irmão. Ou então se casa, como eu. O bom é sair. Você vai ver como tudo muda. O negócio é ser visita. É o meu caso hoje em dia, mas não vou muito lá, porque afinal é longe e somos três - eu, Almerindo e Dulcinha, minha filha. Lá, não tem onde dormir. Mas me dou bem com eles e, digo francamente: até perdoei Pai. Essa desatenção dele com a gente. Só não vou é ficar dormindo em colchonete. Pra Laís é mais fácil, é ela sozinha. Também Laís tem a natureza boa. Essa gente é que está certa, não discute. Isso que é o melhor. Vá levando, Evelina, você com seu irmão. O mais importante: evite discutir. Não digo que é fácil, mas é o melhor. Outra coisa que Pai dizia sempre: a questão da raiva. A abelha morre quando ataca, ao contrário da formiga. Naquele ferrão vai um pedaço dela; fica na gente, latejando, mas depois ela morre. Já a formiga, não. Quem disse foi Pai.
 

 

 

 

29.06.2005