Wladimir Saldanha
As coisas, consideradas com ênfase
- Um aspecto da poesia de Mauro Mota -
A leitura da “Obra Poética” do
pernambucano Mauro Mota (Ensol Editora, 2004) revela-nos um autor que soube fazer do pormenor – um
guarda-chuva, uma manga de camisa, uma gravata – a pedra-de-toque
para a construção de uma linguagem poética própria, onde os objetos
que acompanham o homem falam por si, em testemunho de sua vida.
Ainda que o vocabulário da lírica
moderna tenha incorporado a vida cotidiana, o corriqueiro, a pedra
no meio do caminho (Drummond) ou a estampa do sabonete (Bandeira), o
caso de Mota nos parece peculiar, pela insistência e pelos efeitos,
podendo-se identificar, no recurso, o centro de força de uma dicção
própria, consentânea com a natureza elegíaca do autor – que não
prescindiu, como tantos, da influência decadentista, como ficará
evidente adiante. Seja como for, momentos com esse, em que
“Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.”
(“Assombrações do Recife Velho”)
...saltam aos olhos de quem perpassa
as páginas da “Obra...”, na qual ocorre uma relativa autonomia dos
objetos, esta que irá urdir o que se pode colocar como sendo uma
poesia de objetos (mas não dos objetos). Obcecado, chega mesmo a
compor todo um dos seus melhores sonetos com o recurso da
enumeração:
“DECLARAÇÃO DOS BENS DE FAMÍLIA
Cadeiras e sofás, consolo e jarra,
camas e bules, redes e bacias,
a caixa de charão, o guarda-louça,
tetéias, mesa, aparador, fruteira,
a cesta de costura, o papagaio,
a cafeteira, o cromo de parede,
o jogo de gamão, as urupemas,
o álbum, o espelho, o candeeiro belga,
alguidares, baús de roupa, esteiras
de pipiri, a tábua do engomado,
pilão de milho, o tempo do relógio,
quartinhas, almanaques, tamboretes,
o santo de família, a lamparina,
o carneiro Belém e o seu balido.”
Nesta peça, chamamos a atenção para
dois elementos – “o tempo do relógio” e o balido final do carneiro
Belém, simétricos na posição que ocupam no soneto (os finais dos
tercetos) e no sentido que acrescentam ao poema – o de romperem o
nexo de uma enumeração de coisas, acrescentando à enfiada uma
circunstância humana, o tempo, e uma lembrança auditiva. Espécie de
rima semântica, consegue Mota, com isso, o efeito admirável de
contaminar o homem das coisas que o acompanham, e fazê-las, ao mesmo
tempo, romper em pura e dolorosa sensação humana, num lirismo que
arrebenta o visual para devolver à poesia – garantindo ao leitor o
efeito de susto, de ser pego como de surpresa – o emocional,
recuperado pela memória.
Semelhante é a análise de uma simples
caixa de costura, onde o poeta, esgotado o arsenal da costureira,
acha algo mais:
“CAIXA DE COSTURA
O que dorme dentro desta caixa
vermelha de charão?
O monograma
o novelo de lã
a tesoura corneta
o lápis faber o desenho
o passarinho preso no pano
o carretel de linha bispo
o papel de alfinetes,
a agulha a gota de sangue,
o dedal de prata a memória
da mão da costureira.”
Aqui como lá, o poeta faz o jogo de
esconder do leitor seu verdadeiro foco – a recordação, fundamento
mesmo da linguagem lírica. Com o que seus poemas se garantem de
certo ludismo essencial, afastando, desde logo, qualquer aproximação
com poetas puramente “descritivos”, se é que um dia existiram.
“O lápis”, “O candelabro”, “O
espelho”, “A gaveta” , “ A mesa”, “O paletó”, “Os sapatos”, “A
bengala” e este maravilhoso “O guarda-chuva –
Meses e meses recolhida e murcha,
sai de casa, liberta-se da estufa,
a flor guardada (o guarda-chuva). Agora,
cresce na mão pluvial, cresce. Na rua,
sustento o caule de uma grande rosa
negra, que se abre sobre mim na chuva.”
...são exemplos de poemas em que os
objetos vêm já no título, como muitas vezes ocorria entre os
parnasianos – mas com a só diferença (mais do que suficiente!) de
que, em Mota, a contemplação não se compraz no meramente descritivo,
e justamente porque não é contemplação pura e simples, mas recurso
de poética.
UM ELEGÍACO SINGULAR
Já no livro de estréia, “Elegias”,
encontra-se um poema, antes referido aqui – “Sapatos”, que sinaliza
com a técnica que acompanhará Mota em toda a sua produção posterior.
As “Elegias”, propriamente, dado certo gosto simbolista pela figura
de uma mulher ausente, e certas expressões caras à Escola – “lajes
frias”, “reino de sombras”, “mãos... lânguidas” – destoam do mais do
livro, onde já sobressai um autor, pelos temas e pela linguagem,
receptivo às dicções poéticas do ano em que a obra foi lançada,
1952.
Esse ressaibo simbolista, Mota o
perderá de todo, escoimando sua produção dos velhos clichês. Talvez
seja lícito afirmar, porém, que nunca perdeu a atitude elegíaca,
marca da Escola, transpondo-a entretanto para os objetos do
cotidiano, no que cruzaria exemplarmente uma tendência das
vanguardas com sua natureza decadentista. Substitui a languidez, a
frialdade e a penumbra pela textura e pelo volume das coisas - mas o
tom elegíaco permanece, como uma flor murcha.
Seu poema mais famoso, entretanto, o
“Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, onde se encontram as duas
tendências – o poeta da terra e o lírico, para confluir num poeta
social (o texto trata das jovens pobres de Pernambuco que se
deixaram engravidar pelos militares americanos, na 2ª Guerra) – é
livre do recurso; registramos a diferença, entretanto, em justiça ao
poeta e ao poema, mas entendemos que este momento em nada compromete
a identificação que pretendemos fazer. Os textos construídos sobre
acessórios coexistem com passagens como as do “Boletim...”, mas em
número significativamente maior.
Mais representativo, porém, o
igualmente famoso “Morte Sucessiva” dá-nos um Mota inteiro: na visão
de que a vida se vai dispersando aos poucos, em pequenas mortes
diárias que a compõem, sendo a morte verdadeira apenas a última
(“instante derradeiro”, como diz). Ali também comparecem os objetos
do cotidiano:
“na jarra azul abrindo,
os ponteiros
como uma pinça
extraindo
as horas felizes do relógio da sala,
não se foram sós, foram levando a tua vida fugitiva.”
Em outras vezes, é simplesmente o
poeta da desolação, do olhar que se dirige a uma coisa em busca do
vestígio de seu dono. Uma desolação nada piegas – áspera ou
enternecida, até rude. E há algo de lúgubre mesmo na rosa do
guarda-chuva, rosa negra que “cresce” na mão do poeta. Espreita o
rastro humano, registrando sua temporalidade, seu efêmero. Parece
comprazer-se em nos lembrar: as coisas ficam. Não é, então, sem
certa nota de memento que fala de sapatos, gavetas, bengalas, lápis,
caixas de costuras... Cadeiras que balançam “sem gente”.
Há nas “Elegias” um verso que diz da
“leve calma” que há “no espírito das coisas”. Aí pretendemos ver, a
despeito de toda a marca simbolista desta série, um lampejo do Mauro
Mota que, depois, se afirmará como chama votiva, modo de ver e
constituição de sua linguagem. Há, também, um certo fracionamento da
mulher ausente – são “mãos”, “cabelos soltos”, “passos incertos” –
que, dentro daquele simbolismo, não se antagonizam com a linguagem
dos acessórios: passar da mão à luva, do cabelo ao pente, dos passos
ao sapato não será, afinal, tão difícil. Estando, aliás, o poema
“Sapatos” na posição de abertura do volume, não se pode crer,
entretanto, que sua composição tenha sido anterior à dos sonetos que
compõem a série de “Elegias”, já que ali não se vê mais nada de
idealizador, evanescente ou lânguido: é um poema que já lida com a
memória de forma dura, com uma crueza que bem desmente a “leve
calma”, vista na seqüência das “Elegias”:
“Emborcados sob a cama
ambos caíram de bruços
como se na madrugada
contra o assoalho comprimissem
bocas abertas e mudas
de inlibertáveis soluços.”
Esta a crueza que o caracteriza;
assim, quando se vale do velho recurso da personificação, ou mesmo
quando o ultrapassa, com metáforas mais elaboradas, é para provocar,
expondo a seu modo a relação homem x coisa, uma espécie de “murro no
estômago” do leitor, reação de supresa (des)agradável, de Belo no
feio. Desde Baudelaire, ou mesmo antes, a poesia já abriga esse
paradoxo aparente, estando a singularidade de Mauro Mota no
expressá-lo como voz de sua natureza elegíaca, e somando, à sua
maneira, uma nota própria ao lirismo do cotidiano.
GAVETAS QUE SOLUÇAM
No verso famoso de Drummond, são
tristes as coisas, “se consideradas sem ênfase”. Em Mota, porém, as
coisas são ainda tristes – e com toda a ênfase possível.
Ponto máximo de sua técnica, deixamos
o leitor com o inesquecível “Leilão”, do último livro de Mota,
“Itinerário”. À semelhança dos “Sapatos” do primeiro livro, aqui as
gavetas é que “soluçam” – e, para além da cômoda do poema, também as
que guardavam a poesia de Mauro Mota... Gavetas ou prateleiras de
sebos, até a publicação de sua “Obra”, em 2004.
“LEILÃO
- Quanto dão? Quanto dão?
- Quem dá mais?, grita mais o leiloeiro.
- Esta bengala de castão de ouro!
(Onde anda sem levá-lo o dono antigo?)
- Esta arca colonial!
(Falam dedicatórias de retratos,
falam cartas de amor, a voz trancada.)
- Esta mobília de jacarandá!
(As visitas na sala, o pai, a mãe,
a irmã, a avó cochila no sofá.)
- Este faqueiro de prata!
(Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)
- Esta cômoda do século XIX!
(Soluçam as gavetas; dentro delas,
cheiro de roupa branca e de alecrim.)
- Esta louça azul de Macau!
(A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta xícara
os vestígios dos lábios da menina.)
Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?
E a moça presa dentro deste espelho
do toucador do quarto de dormir?
- Quem dá mais? grita mais o leiloeiro.
Bate o martelo, bate aqui, dói longe.”
* Mauro Mota nasceu no Recife,
em 16 de agosto de 1911 e faleceu em 22 de novembro de 1984.
Publicou os seguintes livros de poesia: “Elegias” (1952), “A Tecelã”
(1956), “Os Epitáfios” (1959), “O Galo e o Catavento” (1962), “Canto
ao Meio” (1964), “Itinerário” (1975), “Pernambucância” ou “Cantos da
Comarca e da Memória” (1979) e “Pernambucãncia Dois” (1980), fora
antologias. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.
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