Zemaria Pinto
Sampa, um exercício intertextual
Desde quando Baudelaire observou, há
140 anos, que o Homem caminha por entre "florestas de símbolos",
nunca mais a literatura foi a mesma. Os conceitos sucessivos de
dialogismo (Bakhtin) e intertextualidade (Kristeva) colocam a obra
literária moderna como tendo origem e fim na própria literatura,
como um espelho estilhaçado refletindo imagens, ampliando-as,
reduzindo-as, invertendo-as. Isso faz com que a obra tenha múltipla
significação, sendo propensa, portanto, a diversas leituras.
Nos últimos 18 anos, "Sampa", de Caetano Veloso, tem sido número
obrigatório em qualquer seleção de mpb, em discos, bares, rodas de
amigos etc. É sucesso fácil. Mas o que é "Sampa", além de uma bela
canção? Usando uma disposição gráfica arbitrária, baseada nas
unidades de sentido texto/melodia, uma vez que Caetano nunca a
publicou, vamos relembrar integralmente o poema, e em seguida, num
exercício de leitura intertextual, enumerar alguns dos diversos
referentes externos nele contidos.
1o. bloco - alguma coisa acontece no meu coração / que só quando
cruza a Ipiranga e a avenida São João / é que quando eu cheguei por
aqui eu nada entendi / da dura poesia concreta de tuas esquinas / da
deselegância discreta de tuas meninas / ainda não havia para mim
Rita Lee / a tua mais completa tradução / alguma coisa acontece no
meu coração / que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
2o. bloco - quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
/ chamei de mau gosto o que vi / de mau gosto o mau gosto / é que
Narciso acha feio o que não é espelho / e à mente apavora o que
ainda não é mesmo velho / nada do que não era antes quando não somos
mutantes / e foste um difícil começo / afasto o que não conheço / e
quem vem de outro sonho feliz de cidade / aprende depressa a
chamar-te de realidade / porque és o avesso do avesso do avesso do
avesso
3o. bloco - do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas / da
força da grana que ergue e destrói coisas belas / da feia fumaça que
sobe apagando as estrelas / eu vejo surgir teus poetas de campos e
espaços / tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva /
panaméricas de áfricas utópicas, túmulo do samba, mas possível novo
quilombo de Zumbi / e os Novos Baianos passeiam na tua garoa / e
novos baianos te podem curtir numa boa
Primeiro Bloco - logo no primeiro verso há uma referência clara à
canção "Carinhoso", de Pixinguinha e Braguinha: "meu coração / não
sei porquê / bate feliz / quando te vê". O coração que canta
"Carinhoso" entra em descompasso pela alegria de encontrar a mulher
amada. O coração que canta "Sampa" sente o mesmo ao depara-se com o
centro velho da cidade-musa.
No instigante samba-rap "Língua", Caetano explicaria o "erro" de
concordância do segundo verso: "vamos atentar para a sintaxe dos
paulistas". Em "Sampa", apropriando-se do falar coloquial
paulistano, o "eu" lírico emissor, em diálogo com um "tu" sublimado
pela própria cidade, fala a linguagem cotidiana do imigrante
integrado à metrópole. Observe-se, ainda, a referência à canção
"Ronda", de Paulo Vanzolini, na textura musical da introdução até o
segundo verso, quando, por um breve instante, parece-nos ouvir o
conhecido "cena de sangue num bar da avenida São João".
Nos versos seguintes deste bloco, Caetano desculpa-se com os
paulistanos por declarações nada simpáticas em relação à cidade,
quando ainda não conhecia a poesia concreta, movimento poético
nascido em São Paulo, cujos principais teóricos viram no
Tropicalismo uma vertente musical de sua poesia. A cantora Rita Lee,
ao lado dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, formou a banda Os
Mutantes, participantes de primeira hora do Tropicalismo, e a coisa
mais interessante surgida até hoje no insípido rock nacional.
Segundo Bloco - aqui o "eu" lírico descobre a realidade da
megalópole em relação à sua origem: Santo Amaro da Purificação ou a
capital, Salvador, seja qual for o parâmetro do poeta-narciso, São
Paulo reflete-se num espelho multifacetado, revelando-se, de
qualquer ângulo, "o avesso do avesso do avesso do avesso" de
qualquer sonho de felicidade. O aprendizado é lento e vai do não se
ajustar, não se reconhecer, até a identificação completa,
explicitada no bloco poético seguinte, num processo de mutação
contínua.
Terceiro Bloco - os três primeiros versos, de forma concisa e
elaborada, desvelam a metrópole paulista:
filas/vilas/favelas/grana/fumaça. Mas daquela paisagem sombria que
causara no "eu" emissor, em data perdida no tempo, a repulsa, ele vê
surgir "poetas de campos e espaços", reafirmando a influência dos
concretistas Augusto e Haroldo de Campos, e brincando com um dos
postulados da poesia concreta: a valorização da disposição espacial
dos elementos gráficos do poema.
No verso que se segue, as "oficinas de florestas" nos dão margem a,
pelo menos, duas leituras. Na primeira, as florestas referem-se ao
estereótipo da "selva de pedra", em movimento contínuo e dinâmico,
horizontal e verticalmente. No discurso intertextualizado, porém,
refere-se ao Teatro Oficina, cujas montagens revolucionaram a
estética teatral brasileira nos anos 60. Nesse mesmo verso, "deuses
da chuva", de plasticidade ímpar, descreve o mítico movimento
cotidiano sob a garoa da cidade. Mas não é, necessariamente, a única
leitura. Podemos anotar uma referência aos "Demônios da Garoa",
conjunto musical "especializado" em Adoniran Barbosa, cultor daquela
especial "sintaxe paulista", que Caetano adota em "Sampa". Uma
terceira referência é o romance "Deus da Chuva e da Morte", do
irrequieto Jorge Mautner, presença sempre próxima aos tropicalistas.
Os versos seguintes, ou melhor, o longo verso seguinte, sugere a
panetnia paulista, para onde diversos segmentos populacionais
convergem, numa convivência pacífica e - no sentido colocado no
texto, citando o continente africano, desagregado - utópica. Em
"Vaca Profana", canção de 1984, Caetano canta, a propósito dessa
panetnia, que "São Paulo é como o mundo todo".
Foi Vinícius de Moraes, parceiro de Adoniran, quem cunhou a
expressão "túmulo do samba". Para Caetano, entretanto, São Paulo é a
fonte revitalizadora da música popular brasileira, metaforizada pelo
quilombo de Zumbi, numa nova referência ao teatro, desta vez ao
grupo Arena, responsável pela montagem de "Arena Conta Zumbi", que
seguia uma linha mais popular e engajada que o Oficina.
Finalmente, já identificado por inteiro com a megalópole, o "eu"
lírico vê os Novos Baianos integrados à paisagem urbana. Se
considerarmos que o conjunto formado por João Galvão, Moraes
Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, entre
outros, surgiu logo após a efervescência maior do Tropicalismo, este
verso pode ser entendido como uma alusão à capacidade paulista de
absorver sem traumas a produção cultural brasileira, para daí
irradiá-la ao resto do país. No último verso, "novos baianos" são
todos os imigrantes, especialmente os nordestinos, invertendo
completamente a conotação pejorativa do adjetivo, emprestando-lhe
até algum carinho. Numa boa.
PS: O ensaio "Sampa, Uma Parada", de Romildo Sant’Anna, in Poesia e
Música (Perspectiva, 1985, org. de Carlos Daghlian), foi o ponto de
partida para o presente texto.
Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e
Fragmentos de Silêncio.
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