Zemaria Pinto
Um estudo
Informação biográfica
João Cabral de Melo Neto nasceu na
cidade do Recife, em Pernambuco, a 9 de janeiro de 1920. Filho de
proprietários de engenhos, passou boa parte de sua infância no
interior, o que marcou, definitivamente, sua literatura. Diplomata
de carreira, exerceu funções diversas na Espanha, Inglaterra,
França, Senegal e Honduras, entre outros. A vivência na Espanha,
especialmente, é outra marca muito forte em seu trabalho.
João Cabral é um poeta de importância
ímpar dentro da literatura brasileira, formando, ao lado de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) e Manuel Bandeira (1886-1968), a
tríade máxima da poesia brasileira do século XX.
Embora filiado, por reducionismo
didático, à chamada "geração de 45", João Cabral é um caso à parte.
Sua poesia não reage contra o Modernismo; pelo contrário, retoma-o,
reelabora-o, abrindo caminhos, com uma dicção teimosamente única.
Contrário a qualquer sentimentalismo e irracionalismo que predominam
em uma poesia herdada dos românticos, João Cabral desmistifica a
poesia e constrói sua obra como um engenheiro: apenas o essencial
permanece.
Assim, ele mesmo divide sua poesia em
Duas Águas (título de uma coletânea de seus poemas, publicada em
1956): uma vertente cerebral, onde o público ideal parece ser
formado de poetas, apenas, tamanha a profundidade alcançada; outra,
de participação, com poemas que falam diretamente aos interesses
populares. Nesta última enquadra-se Morte e Vida Severina, objeto de
nossa análise.
Às portas dos 80 anos, temos a
informação, lamentável, de que o poeta encontra-se irremediavelmente
cego. Para quem viveu sempre sob a luz da poesia, as brumas da
cegueira devem representar um sofrimento terrível.
Principais Obras - Poesia
. Pedra do sono (1942)
. Os três mal-amados (1943)
. O engenheiro (1945)
. Psicologia da composição (1947)
. O cão sem plumas (1950)
. O rio (1954)
. Paisagens com figuras (1956)
. Morte e vida severina (1956)
. Uma faca só lâmina (1956)
. Quaderna (1960)
. Dois parlamentos (1961)
. Serial (1961)
. A educação pela pedra (1966)
. Museu de tudo (1975)
. A escola das facas (1980)
. Auto do frade (1984)
. Agrestes (1985)
. Crime na Calle Relator (1987)
. Sevilha Andando (1990)
Morte e Vida Severina - Análise da Obra
O gênero
Morte e Vida Severina - auto de natal
pernambucano é um poema dramático. O leitor pode observar que a
"história" que se conta não é narrada, mas mostrada através de
quadros e cenas que se sucedem. Este é um procedimento típico da
linguagem teatral. Daí a sua classificação: é um poema porque é
escrito em forma de versos; e é dramático porque sua apresentação
dá-se através de quadros, as personagens falando diretamente ao
leitor (ou espectador). Enfatize-se que o gênero dramático é
essencialmente teatral, embora não se furte à simples leitura.
Aprofundando mais essa idéia, podemos
dizer que o poema dramático Morte e Vida Severina é uma peça de
teatro, de um ato, dividido em 11 quadros, sendo que o derradeiro
subdivide-se em 8 cenas. Para o leitor pouco afeito à linguagem
teatral, dizemos que, na dramaturgia clássica, uma peça divide-se em
atos, quadros e cenas. O ato é um ciclo de ação completo. Há mudança
de quadro sempre que há mudança de cenário. A cena passa a ser outra
sempre que entra ou sai uma personagem.
E a propósito, auto é, na tradição
medieval, uma peça breve, de tema religioso ou profano, com
personagens alegóricas. Tem a duração aproximada de um ato de uma
peça completa.
Observe, com o texto de Morte e Vida
Severina em mãos, que o autor não tem preocupação em marcar essas
passagens, porém, sempre que há mudança (de cena ou quadro), há uma
explicação sumária sobre o que vai ser lido (ou representado). No
"primeiro quadro", por exemplo, lê-se:
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
Por isso, a partir de 1966, João
Cabral de Melo Neto passou a editar seu poema com um subtítulo
curioso: Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta. É que,
ao objeto do nosso estudo, ele juntou outros poemas seus, como O Rio
e Dois Parlamentos, que possuem a mesma estrutura de poemas
dramáticos. As edições mais recentes, acrescidas de O Auto do Frade,
foram rebatizadas como Morte e Vida Severina e Outros Poemas Para
Vozes.
A linguagem
É impossível ler Morte e Vida Severina
sem recorrer com freqüência ao dicionário. Mas isso não significa
anacronismo de linguagem (como no caso de autores que o tempo
envelheceu) ou simples pedantismo. João Cabral usa uma linguagem
culta e corrente, porém sem distanciar-se de seu universo: o
nordeste brasileiro, com sua maneira típica de se expressar, com sua
cultura resistente às intempéries da miséria e à invasão
globalizante. Ainda que escrito há mais de 40 anos, o poema contando
a travessia sertaneja do retirante Severino envolve o leitor com sua
linguagem simples e objetiva, mas sem abrir mão de uma forte
identidade regional. Mas não confunda, leitor, com as caricaturas do
linguajar "típico". Não. Em Morte e Vida Severina, a linguagem
regional entra de cabeça erguida, ombro a ombro com a linguagem
comum aos grandes centros. Os regionalismos aqui têm a função
específica de marcar a trajetória de Severino, conferindo-lhe a
autenticidade testemunhada pela linguagem popular. Observe também o
uso dos topônimos, que se espalham por todo o poema. Por exemplo:
- Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
- Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
- Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
O estranhamento provocado por essas
combinações compensam a escassez de imagens "poéticas", típica da
poesia de João Cabral de Melo Neto, sempre tão econômico em
metáforas, metonímias e outras figuras que embelezam uma certa
poesia de consumo fácil. Em João Cabral, a linguagem reflete a
própria paisagem que ele descreve: agreste, dura, seca. As exceções,
raras, mostram imagens belamente cruéis (!), como no quadro dos
"irmãos das almas", quando a bala assassina é chamada liricamente de
"ave-bala" e "pássara"...
O ritmo
É lendária a aversão de João Cabral
pela música. Sua poesia não tem as aliterações, as assonâncias e as
rimas consoantes que permitem a identificação musical do poema logo
numa primeira leitura. Isso resulta numa harmonia difícil, renovada
a cada quadro ou mesmo dentro do quadro. Em Morte e Vida Severina, a
predominância métrica é da redondilha maior, o verso de sete sílabas
(heptassílabo). Vejamos o exemplo seguinte, que é o primeiro verso
do poema:
O / meu / no / me é / Se / ve / ri (no)
1 2
3 4
5 6 7
Todo esse primeiro quadro é escrito
dentro desse mesmo esquema métrico, constituindo-se em um poema à
parte, sem estrofes. Mas logo no quadro seguinte, o dos "irmãos das
almas", esse esquema muda para uma seqüência de estrofes regulares
de quatro versos, com alternância também regular entre heptassílabos
e tetrassílabos:
A / quem / es / tás / car / re / gan (do)
1 2
3 4
5 6 7
ir / mãos / das / al (mas),
1 2
3 4
em / bru / lha / do / nes / sa / re (de)?
1 2
3 4
5 6 7
di / zei / que eu / sai (ba)
1 2
3 4
No quadro seguinte, onde Severino
medita sobre o "corte" do Capibaribe, o poeta volta ao longo poema
sem estrofes e ao esquema métrico uniforme da redondilha maior,
fazendo uma exceção para dois versos que "reproduzem" uma ladainha.
Conte você mesmo, leitor:
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria
Contou oito sílabas métricas? Pois é,
o poeta chamou sua atenção, pela mudança de ritmo, para o quão seria
difícil seguir aquela "ladainha", que alterava o seu ritmo
cotidiano...
O oitavo quadro, no qual Severino
"assiste ao enterro de um trabalhador de eito", é exemplar dessa
heterogeneidade rítmica. Ele é composto de um conjunto de nove
poemas diferentes. O primeiro tem seis quadras de medidas variadas
(versos heterométricos). O segundo e o terceiro têm seis tercetos. O
quarto e o quinto têm seis dísticos. O sexto e o sétimo, quatro
dísticos cada. O oitavo e o nono, três tercetos. É como se a cova,
"em palmos medida", fosse sendo fechada à medida que os
circunstantes falam. Embora haja predominância da redondilha maior,
o autor opta pela liberdade métrica. A harmonia procurada está no
conteúdo, nas idéias que ele passa, não na forma, que é fátua.
A estrutura
Já dissemos antes que Morte e Vida
Severina é uma peça de um ato, dividido em 11 quadros e que o último
quadro subdivide-se em 8 cenas. Vamos esmiuçar um pouco mais essa
questão. Acompanhe-nos, anotando no seu livro, para facilitar a
leitura que faremos posteriormente. Nos quadros ímpares, até a
primeira cena do quadro 11, temos sempre monólogos de Severino. Ele
fala consigo mesmo, como se meditasse em voz alta. Nos quadros
pares, do 2 até a segunda cena do 11 (que corresponderia,
hipoteticamente, ao quadro 12), temos diálogos, nos quais Severino
participa ou apenas observa, como nos quadros 4 (das excelências),
no 8 (do enterro) e no 10 (da conversa entre os coveiros).
Pedimos um pouco de paciência do
leitor para essa maçante conversa sobre a "estrutura física" do
poema, mas ela é fundamental para a compreensão de uma das mais
belas "sacadas" de João Cabral na composição de Morte e Vida
Severina, que merecerá, inclusive, uma breve análise à parte, logo a
seguir. Por isso vamos dividir o ato único em duas partes: a
primeira vai do quadro 1 (que funciona, tendo em mente a estrutura
dramatúrgica clássica, como exposição) até a segunda cena do quadro
11 (o diálogo entre Severino e o mestre carpina, Seu José). A
segunda parte começa na cena 3 do quadro 11 (quando uma mulher
anuncia o nascimento do filho de José) e vai até a última cena (que
funciona como epílogo).
O drama do retirante vira auto de natal
Feita a divisão do poema em duas
partes distintas, o leitor observará que a primeira parte, marcada
pela peregrinação de Severino e pontuada por constantes encontros
com situações trágicas e/ou patéticas, culmina com a idéia de
suicídio:
- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
Como que respondendo a essa pergunta,
inicia-se a segunda parte, e, até o fim do poema, Severino passa a
ser um mero espectador, sem participar dos acontecimentos. Pois o
que temos nessa segunda parte é o verdadeiro "auto de natal" do
subtítulo, representado magicamente para Severino, como resposta à
sua angústia.
Observe ainda, leitor, que o poeta não
se preocupou em dar um destino a Severino. É o que os estudiosos da
literatura chamam de "obra aberta": é você quem vai decidir se
Severino salta "fora da ponte e da vida" ou se, comovido com o
espetáculo que acabara de presenciar, segue seu caminho, lutando
pela vida.
Uma leitura severina
O retirante Severino é uma alegoria. A
começar pelo próprio nome, derivado de Severo - do latim severus,
severo, austero, rigoroso. Como o próprio sertão. Como a própria
miséria. A terra. Ele representa todo um povo, entre a Caatinga e a
Zona da Mata, que termina nos mocambos equilibrados sobre a lama do
litoral metropolitano do Recife, a um só tempo porta do céu e do
inferno - para os que ainda têm esperanças e para os que já a
perderam de vez.
Veja, leitor, o primeiro quadro, a
exposição, onde Severino diz quem é e a que veio. Severino sabe-se
sem identidade. Ele é ninguém e é todo mundo. Esse primeiro quadro
tem a função de expor os elementos temáticos do poema: Severino é o
lavrador nordestino, "lavrador de terra má", como ele dirá mais
adiante, sempre a querer arrancar "algum roçado da cinza",
caminhando ao encontro da "mesma morte severina":
que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
No segundo quadro, temos o primeiro
encontro com a morte, onde Severino toma contato com a violência e
com a impunidade: um lavrador, como ele, está sendo levado para ser
enterrado em outra cidade. Fora assassinado por questões de terra.
Ainda que pouca, ainda que avara, a terra é motivo de cobiça
incessante. Observe, leitor, a metonímia, quando Severino pergunta
sobre o destino do criminoso:
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
A resposta é plena de ironia, que,
aliás, sutilíssima, perpassa todo o poema:
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
Numa terra sem lei, o poder do
criminoso cresce na mesma proporção em que lhe crescem as
propriedades. Aqui podemos imaginar o poeta, de dedo em riste,
acusando os crimes e a impunidade dos grandes latifundiários, na
guerra surda que foi tema de muitos romances nos 20 anos que
antecederam a publicação de Morte e vida Severina.
No terceiro quadro, Severino medita
sobre um fato inusitado: o rio Capibaribe - que era uma espécie de
guia de sua viagem, pois, margeando-o, ele sabia que chegava ao
Recife - secou e ele encontra-se em pleno deserto, sem saber
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
No quadro seguinte, Severino tem seu
segundo encontro com a morte, ao participar do velório de um "severino".
Novamente a ironia cortante:
- Dize que coisas de não
ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.
No quinto quadro, Severino medita
sobre a possibilidade de interromper a caminhada, impressionado com
a presença constante da morte:
- Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
Esse pensamento leva-o a procurar
emprego, o que acontece no quadro seguinte, o sexto, onde o leitor
fica conhecendo melhor o nosso personagem, pois ele, no diálogo com
a mulher, revela-se por inteiro. É interessante observar a
contundente ironia deste quadro, que começa de forma positiva,
quando a mulher lhe fala que
- Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
À medida, entretanto, que Severino
enumera suas habilidades no trabalho com a terra, com o gado e com a
moenda de cana, ela vai refutando uma a uma como inúteis, até
levá-lo ao paroxismo da irritação:
- Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
Caberia aqui até uma exclamação, mas o
poeta é econômico nos arrebatamentos. Embora não haja cadáveres
neste quadro, ele representa o terceiro encontro de Severino com a
morte, pois o trabalho que nunca falta relaciona-se diretamente com
ela: rezar benditos, cantar excelências, tirar ladainhas, encomendar
defuntos.
- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
O quadro seguinte, o de número sete,
mostra Severino, já novamente a caminho, chegando à Zona da Mata,
pensando novamente em interromper a viagem, cujo destino final, não
nos esqueçamos, era a capital, Recife. O que o faz pensar assim é a
mudança da paisagem, a abundância de água e a fertilidade da terra.
Observe, leitor, a delicadeza com que o poeta nos informa sobre essa
qualidade da terra:
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
No quadro seguinte, entretanto, o
oitavo, um novo encontro com a morte desfaz suas ilusões. Ele ouve o
que dizem os amigos de um morto enquanto o enterram. É esta a
passagem mais conhecida de Morte e Vida Severina, graças à música
que Chico Buarque fez, em 1965, para o primeiro poema (você deve
estar lembrado que, quando falamos do ritmo, dissemos que este
quadro era composto por 9 poemas, que vão se contraindo em extensão,
como a representar a cova que se fecha). Eis a transcrição integral
do poema:
- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
- Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas à terra dada
não se abre a boca.
Se procurássemos uma motivação
política para justificar Morte e Vida Severina, sem dúvida nenhuma,
começaríamos por este poema, que, de maneira clara e objetiva, e com
ironia fulminante, questiona a reforma agrária.
Severino, chocado com o que ouve,
apressa "os passos para chegar logo ao Recife", conforme nos informa
o título do nono quadro. Neste monólogo, Severino mostra-se já
desesperançado:
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.
O décimo quadro reserva um novo
encontro com a morte. É bem verdade que apenas sugerido: chegando
finalmente ao Recife, Severino senta-se para descansar, por acaso,
ao pé do muro de um cemitério, e ouve, sem querer, a conversa entre
dois coveiros. Neste quadro, além de fina ironia, João Cabral usa
também de humor como recurso poético/dramático. Ao final do diálogo,
entretanto, o tom fica sombrio, o que faz recrudescer a melancolia
de Severino:
- E esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitérios esperando.
- Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vem é seguindo seu próprio enterro.
O quadro seguinte, que é também o
último, com 8 cenas, tem início com um monólogo de Severino, onde
fica evidenciada sua intenção de suicídio:
A solução é apressar
a morte a que se decida
Na cena seguinte, Severino aproxima-se
do carpinteiro José e inicia com ele um diálogo que reafirma seu
desejo de morrer. José, entretanto, é homem calejado e responde-lhe
às perguntas mórbidas sempre de forma muito positiva e equilibrada.
O diálogo é interrompido com a entrada em cena de uma mulher que
anuncia o nascimento do filho de José. Neste ponto exato, termina a
história de Severino e começa a representação do auto de natal.
O auto dentro do drama
Alguns parágrafos atrás, dissemos que
Severino é uma alegoria, ou seja, por trás de sua trajetória o autor
quer representar a trajetória de toda uma população. Mais parágrafos
atrás ainda, dissemos que o auto, na tradição medieval, usa
personagens alegóricas. Para o leitor compreender melhor o
significado dessa definição, lembramos que, para mostrar o embate
entre o Bem e o Mal, os autores medievais usavam representar aquele
por anjos e este por demônios. Esse procedimento é milenar,
confundindo-se, na manhã dos tempos, com os mitos. Na antiguidade
clássica, os gregos representavam o Amor sob a figura de Afrodite ou
de seu filho Eros. A Sabedoria era representada por Atena. A
Justiça, por Têmis. A Guerra, por Ares, mais conhecido pelo nome
latino de Marte. Enfim, a alegoria consiste em representar uma
idéia, um conceito, uma abstração, por algo concreto, visível.
O auto de natal que acontece dentro do
poema dramático Morte e Vida Severina encerra significados outros
subjacentes ao texto principal. Observe, leitor, o personagem José.
Ele é carpinteiro e veio de Nazaré da Mata. Embora não se lhe diga a
idade, pelo amadurecimento das reflexões, nota-se que não é nenhum
jovem. A figura de José é calcada, o leitor atento já deve ter
percebido isso, na de José, o pai de Jesus, conforme a tradição
cristã, ele também carpinteiro, morador da cidade de Nazaré, na
antiga Galiléia.
A mulher que aparece de súbito na
terceira cena do quadro 11, interrompendo o diálogo entre Severino e
José e dando início ao auto, é ninguém menos que o anjo da
Anunciação. O mocambo em frente do qual se desenrolam as cenas
seguintes é, na verdade, um presépio, no melhor estilo da tradição
cristã. Na quarta cena, os vizinhos representam os pastores que,
alertados por um exército de anjos, vieram adorar o recém-nascido,
cantando-lhe louvores. A cena seguinte lembra a visita dos reis
Magos, que oferecem presentes diversos à criança, enfatizando a
condição de pobreza generalizada, mas sem perder o humor, um humor
muito especial, que tange a crueldade:
- Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
Na cena de número 6, duas ciganas
fazem previsões sobre o futuro do menino. Esta passagem é muito
significativa. Uma delas o vê "progredindo" na vida, negro não mais
da lama dos mangues, mas da graxa das máquinas, saindo da condição
de trabalhador marginal para a de trabalhador empregado, concluindo
com aguda ironia:
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.
A sétima cena retoma a adoração, onde
as pessoas louvam a beleza do menino. Observe, leitor, que a beleza
da criança não é evidente. Pelo contrário, é uma criança esquálida,
pálida, guenza. O que se ressalta é a beleza interior e a certeza de
que, apesar de tudo, a vida vale a pena. Não nos esqueçamos que esse
momento mágico é uma resposta à aflita pergunta de Severino. O
menino é
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
Após a louvação da beleza da vida,
ocorre a última cena, que funciona também, como já dissemos antes,
como epílogo, isto é, o fechamento da ação, onde José, dirigindo-se
a Severino, que apenas o escuta, tece considerações sobre o que
acabara de acontecer e sua relação com a angústia de Severino:
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva
Onde andará Severino?
Quarenta e cinco anos são passados
desde que João Cabral de Melo Neto colocou o ponto final no texto de
Morte e Vida Severina. Reflita um pouco, leitor, sobre os Severinos
de hoje. Quem são eles? Os Severinos continuam vindo do interior
para a capital em busca de melhores condições - e o que encontram?
Desemprego, miséria, violência. Os Severinos atuais são os sem-terra
que buscam apressar a burocracia da reforma agrária. São os sem-teto
que incham as capitais e tornam o interior cada vem mais improdutivo
e dependente das decisões políticas das capitais.
O poema de João Cabral mantém-se vivo
e atual porque nesses 45 anos passados muito pouco ou quase nada
realmente mudou para boa parcela da população brasileira, que não
tem direito a água encanada, luz elétrica ou saneamento básico. Que
vê a saúde sendo tratada como mercadoria de terceira classe e a
educação definhando a olhos vistos. Uma gente que não tem direitos,
que vive à margem dos avanços tecnológicos e que não passa de mera
estatística quando o assunto é a violência dos grandes centros
urbanos.
Mas Morte e Vida Severina é apenas um
poema, e poemas não promovem revoluções. Mas têm uma função
utilitária, sim: junto ao prazer provocado pela leitura, o poema tem
a função de nos fazer pensar sobre essa vida severina, que é a vida
de todos nós, e no que podemos fazer para mudá-la. Pense nisso.
Leia João Cabral de Melo Neto
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