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Zemaria Pinto

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

09.10.2005




A poética de Jorge Tufic

 

"Poeta não se define: é um ser à parte”. A análise de uma obra literária de qualidade dispensa a teoria literária e todos os seus (pre)conceitos, buscando engendrar uma nova teoria, específica e apropriada unicamente àquela obra sobre a qual nos debruçamos.

Jorge Tufic, foto de João Justino

Um novo livro de Jorge Tufic é uma oportunidade ímpar para deixarmos de lado tudo aquilo que aprendemos e iniciamos um novo aprendizado do que é a poesia lírica neste início do Século XXI.

Estreando em livro em 1956, com Varanda de Pássaros, Jorge Tufic construiu, nestes quase 50 anos, uma poesia rigorosa e reflexiva, mas sobretudo inquieta: Das pedras que lavro, diz ele no poema “O Ofício”,
 

soltam-se, às
vezes, clarões e
gemidos.
Estados, brilhos
que imitam
palavras.

 

Não à toa, a pedra é uma imagem recorrente neste livro de Tufic, ora como elemento natural, ora, no mais das vezes, como metáfora da liça cotidiana. Mas um poema não é apenas um amontoado de palavras. As pedras-palavras a que se refere o poeta precisam ser trabalhadas exaustivamente para que logrem alcançar o “estado de Poesia”. É o que temos neste O Sétimo Dia, uma referência explícita ao Gênesis, quando Deus deu sua obra por terminada e descansou, ou melhor deu-a ao uso do homem - que desde então tem-se dedicado a destruí-la. O “sétimo dia” é, pois, o dia da contemplação, do lazer, do prazer. É o dia da poesia. O poeta conclui mais uma coletânea e a entrega para deleite de seus leitores. Mas, com certeza, não descansa. Antes, trabalha lavrando pedras, pois tem sido assim desde o início, e é assim que ele chega, com este, ao 43º título de sua brilhante carreira.

“Poeta não se define: é um ser à parte”. Dividido entre “Sonetos” e “Poemas”, O Sétimo Dia traz um Jorge Tufic peregrino, desde Sena Madureira a Salamanca, passando pelo Cairo, por Alcântaras, Machu Picchu, Nam Madol, Atlanta, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Lisboa e Singapura. Além, claro, de Manaus e Fortaleza. No soneto “Périplo”, talvez a chave dessa busca incessante, ele escreve:Cidades inventei por toda parte
 

quando o tédio mostrou-me o seu reverso:
nos sítios da miséria, o controverso
lixo da solidão que se fez arte.
Perdi a mala, o sonho, o meu tabaco.
Lavrando rochas, decepando luas,
tudo me enoja, tudo me enche o saco.

 

Sinto falta de Beirute, mas o Líbano também se faz presente no “Soneto à Beringela”, vegetativa musa sobre a mesa; no “Soneto Árabe” - Amada os cedros voam. Pedras cantam / nos âmbares da terra -, nos oásis, nas tâmaras, nos sândalos, nos desertos, nas tendas recorrentes, e, muito especialmente, no “Soneto para Kahlil Gibran”:
 

Letra por letra a doce voz do mestre
vai-se passando para o coração.

 

O ser generoso cultiva a amizade e cultua a arte, alegorizada no “sétimo dia” genesiano. Assim, Tufic contempla os amigos, como, entre tantos, Nilton Maciel, Almir Diniz, Marco Luchesi e amada Izabel, e faz arte sobre arte ao dizer daqueles amigos que lhe preenchem a solidão, como Van Gogh, Borges, Huidobro, Rembrandt, Cioran, Bandeira, Kurosawa e o distante Van Pereira. Mas é o cachimbo, outra recorrência, o melhor companheiro da solidão, quando o poeta descobre “a geometria do incativo e momentâneo brilho do que passa”. São momentos de sonho, lições simples, de há muito cristalizadas na memória: Não sei dizer passarinho

 

sem dizer passarinhos,tal como ensinava
a senhora de meus dias.
Ela dizia de um modo
que se via e se ouvia
o ser e o canto
a pluma e o vento;
e, por detrás de tudo,o canto do encanto
tanto do pássaro
como dos passarinhos.
A’sso-fir, em árabe
são pássaros de pássaro
e pássaro de pássaros.

 

Tufic nos dá lições de simplicidade e plasticidade: simplicidade plástica e plasticidade simples - pois essa é a essência de uma poesia que, sem pretensão de inventar, está sempre a renovar-se,
 

Eu tive um lar, talvez uma varanda
com árvores de fogo nos telhados:
Quantos metais se fundem nessa chama
Versos-medula plangem neste abraço
junta-se ao nosso o eco de outros nadas.
de luz & sobra paz & antemanhã
Late um cão neste verso, late late
Todos os mortos pulsam nas raízes
Palavras há também sobre os destroços
da noite plena como é pleno o sexo
De qualquer solidão brota a poesia.
para que eu chova estrelas, vento claro.

 

O ser generoso tem o ânimo elevado, ainda que sujeito a angústias episódicas, especialmente ao tédio dos domingos - porque o sétimo dia, meus amigos, é o sábado; o domingo é apenas o dia da “ressaca vital”, o dia da criatura sem o criador:

 

Como sugar
que tudo resseca
as tâmaras vitalícias
do apogeu
e da
alegria?

 

Eu dizia que, a despeito dos domingos, o humor do poeta mantém-se vivo, seja olhando velhos álbuns de fotografias, seja num “anúncio” que beira o nonsense:

 

Aluga-se um velho
que já não serve para nada
Garante-se, porém,
que ainda olha e vê.
E enquanto olha e vê
cachimba
os pedaços da noite.

 

“Poeta não se define: é um ser à parte”. Alencar e Silva já percebera isso no ensaio Jorge Tufic: as tendas do caminho “vem o Poeta construindo e diversificando os seus caminhos, percorrendo e iluminando as suas sendas e cumprindo, enfim, o itinerário que se traçara ao adentrar as terras-do-sem-fim da poesia”. Esses caminhos que se bifurcam e se multiplicam são os caminhos da inquietação que só o verdadeiro artista experimenta - mesmo quando em estado de contemplação, mesmo quando apenas cachimba em seu cachimbo, feito “não de roseira, que a rosa é o fumo, mas do aroma e da nuvem passageira”.

Eu, que não gosto de adjetivos, pinço deste livro um soneto magnífico, que, se não fosse pela obrigação ritual da apresentação que me foi pedida - e pelo orgulho-narciso de assomar a esta tribuna -, poderia ter lido logo no início desta fala e dado por encerrada minha participação, pois se trata de uma síntese de tudo o que falei até aqui, uma autêntica póetica - uma definição viva do que é a poesia, o poeta, o fazer poético: Por fim, um magnífico soneto, no qual Jorge Tufic faz uma síntese de tudo o que expus até aqui. Trata-se de uma autêntica Poética - uma definição viva do que é poesia, o poeta

 

Poeta não se define: é um ser à parte.
De homem se veste, de animal caminha,

mas algo nele de anjo se avizinha
quando em fatias brancas se reparte.
Cheira o pão de seus versos: faz-se arte
pela dor que humaniza e que espezinha;
não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,

mas a dor que se empluma no estandarte.
Pode ser o domingo que se anula,

um galgo que tropeça, o lenço esgarço
que, sendo de Marília, ainda tremula.
Para si mesmo estranho ele se enigma,

avesso ao paletó, caderno esparso,

nada o liberta, nunca, desse estigma.

 

Zemaria Pinto
Poeta e ensaísta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

13.10.2005, fsf