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Cid Seixas




Da presença de Eros na lírica romântica

 


Em outros termos, a transferência não é nada de real no sujeito, senão a aparição, num momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais ele constitui seus objetos.
Jacques Lacan


 

O Romantismo, conforme o lugar comum, não é apenas um movimento literário ou artístico — exaurido pelo advento do Realismo — mas um estado de espírito e um projeto de vida que caracterizam a primeira metade do século XIX e, intempestivamente, são flagrados na ideologia do homem que anuncia o ano dois mil. Oriundos das radicais transformações sofridas pelas relações econômicas da sociedade, a prática e o pensamento românticos inauguraram uma nova cultura, contendo traços característicos entre si contraditórios. É neste jogo de contradições que tem lugar a lírica de Castro Alves, onde a energia de Eros triunfa sobre a estagnação depressiva do caráter romântico.

2. No dizer de Karl Mannheim, “o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas”,[1] lamentando suspiros e rimas a nobreza, que perdeu a hegemonia, e a pequena burguesia, ansiosa pela ascensão econômica e social. Daí, a melancolia saudosista e o quixotismo reivindicante, fortemente marcados pela impotência do espírito contemplativo.

3. A moral sexual dessa cultura, rasgada por contradições e conflitos, se ressente da tensão entre o delírio fantasioso do desejo e a expiação obsessiva de culpas imaginárias. O homem, incendiado pela ânsia de vida e amor se proíbe a plenitude dessa experiência, recusando à mulher a condição de parceira na procura lúdica. Só é considerada merecedora do amor romântico a virgem de pureza passiva, enquanto a mulher que não se deixa vencer pelo bloqueio da libido poderá ser, apenas, objeto de desejo, saciado no fogo infernal do desprezo e da condenação moral romântica.

4. Ao proibir à companheira o desenvolvimento da personalidade, o romântico projeta a interdição sobre si mesmo, pagando tributo à compreensão ascética do desejo como pecado.

5. Ao punir a mulher com a condenação ao bloqueio do desenvolvimento libidinal — substituindo o desejo pela ausência contida no símbolo “pureza” — ele se pune a si mesmo.

6. As experiências e excitações que o ego tenta rejeitar são expulsas e depois são sentidas como estando fora dele. Aquilo que é ofensivo aos princípios do ego, — dizia Fenichel no seu indispensável manual (dispensado pela tropa de choque lacaniana) — “é percebido na outra pessoa e não no próprio ego do indivíduo, de modo que se pode dizer do mecanismo de defesa da projeção o mesmo que da ansiedade e do sentimento de culpa: reações arcaicas que nas fases iniciais do desenvolvimento ocorrem de forma automática vêm a ser, ulteriormente, amansadas pelo ego e usadas para os seus fins defensivos.” [2]

7. Compreenda-se portanto que, ao utilizar a expressão “projeta” para designar um movimento também introjetivo, queremos sublinhar a dialética do processo, onde um fato mental é afastado através da projeção, permitindo e dissimulando a posterior introjeção. A ação provocada pelo indivíduo sobre si mesmo vai incidir diretamente sobre a mulher, espelho reflexivo, e indiretamente sobre ele, alvo da ação, através do retorno. Recorremos aqui à imagem de um espelho retroprojetor, do mesmo modo que o romântico recorre à mulher, o que permite o “projetar sobre si mesmo”.

8. Por outro lado, sabe-se que na paranóia a projeção, como mecanismo de defesa, atinge o mais elevado grau. Sabe-se ainda que os sintomas mais comuns da paranóia permeiam as características básicas atribuídas ao romantismo. Compondo o silogismo, digamos: se aceita a tradicional aproximação dos paranóicos com as grandiosas personalidades, sempre perseguidas pelo destino, que são os incompreendidos gênios românticos, o Romantismo terá a projeção incluída entre os seus mecanismos mais destacados.

9. O fato da moral burguesa reservar, quase que exclusivamente, à mulher de categoria social menos elevada o papel de objeto sexual terminou por condicionar a identificação do prazer amoroso com aquilo que é mais desprezível aos olhos do burguês: a decadência na escala econômica ou social. Se a paixão dos sentidos se concretiza em chamas com uma pobre rapariga de subúrbio, o romântico não consegue dissociar as noções de prazer e pobreza aí articuladas. como o não possuir riquezas se configura como o inferno burguês, o ser possuído ou possuída pelo prazer evoca constantemente esta temida situação.

10. A propósito da natureza clivada pela contradição e pela parcialidade românticas, podem ser lembrados os versos de Capinan que dizem:

Todos os santos têm o sexo amputado.
E cansados de suster a própria boca
maldizem ter fome, enquanto comem
 

ou ainda:

O santo é só um ângulo do homem.[3]
 

11. O homem romântico, agente e vítima da moral burguesa, guarda com remorsos a face encoberta pelas sombras, comendo com gula e nojo a voracidade da sua culpa.

12. Mas a mulher, como percebeu Dante Moreira Leite, foi o alvo das conseqüências mais anulatórias deste processo, para quem “O matrimônio seria afetivamente insatisfatório, e a permanente frustração encontraria fuga no romance de folhetim, que representava, portanto, uma necessidade no sistema de repressões da época. A situação do homem era, sem dúvida, mais cômoda, pois o ambiente social permitiria a busca de relações afetivas mais satisfatórias, sem que por isso devesse renunciar ao respeito da família e da sociedade. Para ele, o castigo seria de outra ordem: viveria atormentado pela idéia de que sua mulher também pudesse traí-lo. Para o romântico, o pior de todos os castigos.”[4]

13. Em torno desse quadro, a literatura em geral e a poesia em particular vão estabelecer seu espaço, revelando-se talvez a maior ou menor aptidão para a transgressão artística no modo de fixação da realidade transfigurada. Os espíritos mais comprometidos com o espaço de convenção de uma cultura não conseguem transitar para além das fronteiras demarcadas, nem articular a conquista de um novo espaço que marcará a continuidade do processo histórico como evolução do homem. Nesse particular, a lírica de Castro Alves merece maior atenção no quadro da Literatura Brasileira do século XIX. O mais rápido confronto deste poeta com toda a nossa tradição romântica, no que concerne ao tratamento do amor, põe, sem dúvida, o jovem autor de Espumas flutuantes numa posição menos comprometida com os “males do século”.

14. Conforme demonstra a crítica, Castro Alves ocupa um lugar ímpar na lírica romântica por não ter limitado seu texto à simples expressão da “ânsia de amar”,[5] como ocorre, por exemplo, com Álvares de Azevedo que cristaliza o ideal contemplativo da moral sexual romântica. Recorda-se o conhecido e admirado “Lira dos vinte anos”:

Oh ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo!
 

15. É evidente que, neste caso, o canto substitui a posse do objeto, conforme se poderá depreender do confronto destes versos com outros textos de Álvares de Azevedo, para quem o poema é uma forma de sublimação. Como o amor ideal não pode ter existência e imagem no ato humano de amar, considerado proibido pela consciência romântica, a sublimação através da poesia será a única maneira de resolução do conflito. Uma maneira precária, no caso em foco, que se alterna com a obsessão pela morte — único meio seguro de eliminação dos conflitos burgueses, conforme o testemunho da experiência romântica.

16. Manuel Bandeira, na Apresentação da poesia brasileira, reúne dados bastante significativos para uma análise do caso Álvares de Azevedo, protótipo de uma época, como o trecho da carta que diz: “Sinto no meu coração uma necessidade de amar, de dar a uma criatura este amor que me bate no peito. Mas ainda não encontrei aqui uma mulher — uma só — por quem eu pudesse bater de amores”.[6] Álvares de Azevedo, é importante que se diga, vivia em São Paulo, grande centro urbano, onde as possibilidades de relacionamento afetivo eram maiores do que em pequenas cidades. Mas o que chamamos acima de cristalização do ideal contemplativo da moral sexual romântica levou o poeta a se proibir a vida da cidade, tendo inclusive deixado de freqüentar certa casa de família “pois não é das melhores nem muito louváveis, pelo contrário, é bem nodoada a reputação dessas senhoras”.[7] Este depoimento é por si mesmo eloqüente, dispensando qualquer adendo, além das observações iniciais deste ensaio que compreende a moral romântica como um sintoma. Não no sentido semiótico do termo, mas no sentido patológico.

17. Voltemos a Castro Alves e a hipótese do seu distanciamento do quadro romântico, no que diz respeito a incorporação de algumas características de uma época marcada pela enfermidade do espírito ou pela interdição do desenvolvimento da personalidade. Não é sem causa que se identifica o espírito romântico com o espírito infantil, onde a natureza exigente e compulsiva, indiferente às necessidades alheias, desemboca na regressão e na destruição.

18. Com argúcia e poder de síntese, Alfredo Bosi observa, com respeito a Castro Alves: “Com ele fluem sem meandros as correntes de uma renovada lírica erótica, tanto mais forte e limpa quanto menos reclusa no labirinto das culpas sem remissão.[8]

19. Se o romântico em geral não consegue viver em paz com Eros, em decorrência do seu compromisso com a regressão e com Thanatos, em Castro Alves, o culto ao deus do amor é uma vocação.

20. Mas quem são estes deuses responsáveis pela divisão e pelo conflito derradeiro dos homens? Inimigos ou aliados?

21. Nos muros da Cidade da Bahia, uma inscrição de piche unia os dois num casamento verbal:

AMORTEAMO
 

22. Na velha Grécia, Eros era reconhecido como o filho de Afrodite ou, para os mais antigos, como um dos deuses primeiros, que surgiu ao mesmo tempo que a terra. Já Thanatos, o terrível carrasco dos deuses, era irmão de Hipno, o sono, e filho do Caos e das Trevas.

23. Para Freud, Eros é a pulsão da vida, cujo alvo é instituir unidades cada vez maiores, e conservar, enquanto Thanatos tem como alvo dissolver os agregados e destruir as coisas.

24. Platão, no Banquete, antecipa muitas das reflexões de Freud e coloca questões estimulantes para a investigação do inconsciente que, no nosso século, seria assumida não mais pela filosofia ou pela metafísica, mas pela psicanálise. Para o filósofo, o amor é simplesmente um desejo, uma privação: “Portanto, a pessoa, e quem quer que deseje alguma coisa, deseja forçosamente o que não está à sua disposição, o que não possui, o que não tem, o que lhe falta; ora, não são estes justamente os objetos do desejo e do amor?”[9]

25. Se tomarmos como proposta a discussão de três conceitos: o objeto, a ausência e o símbolo — será evidente que o amor, segundo Platão, terá existência entre a ausência e o símbolo. O objeto será sempre inatingível e estará sempre ausente. Qualquer objeto outro tomado como alvo será apenas visto como símbolo — ou será transformado em símbolo —, assegurando assim a ausência do objeto desejado: aquilo que Thanatos roubou ao homem, deduziríamos do discurso platônico.

26. Opondo-se à crença dos seus contemporâneos segundo a qual Eros é um deus, o filósofo afirma que se trata de um gênio — traduziríamos: de uma força — que preenche o vazio que há entre os deuses e os homens. O objeto do amor seria sempre o desejo da imortalidade, assegura o autor de Banquete: “Não deves pois te espantar de que todos os seres amem o que procriaram, pois é devido ao desejo de imortalidade que amam e se desvelam.”[10] Em outro momento ele reafirma que o amor é o desejo de possuir sempre, e nós podemos acrescentar: possuir o que é impossível (“Quero tudo que não tenho / porque nunca o terei.”.[11] Irreversivelmente, Thanatos nos roubou o objeto que nos tornaria igual aos deuses: a permanência da vida, a imortalidade. Se Eros é para Platão a força perene da vida, sua grande luta será sempre travada com Thanatos. Mas, irremediavelmente, sua vitória, quando ocorre, é sempre simbólica: a conquista do objeto roubado ao homem por Thanatos será realizada simbolicamente no fruto do amor. O filho é a continuação e a imortalidade do pai, mas é constituído pela ausência do pai, sendo portanto seu símbolo.

27. A busca da imortalidade se opera na alquimia da transmutação da não-existência, seja criando, pela fertilidade do corpo, um outro homem, seja, pela fertilidade do espírito, concebendo obras que assegurem a permanência do criador. E arremata Platão, através da fala de Diotima: “Pois o mesmo se dá com o amor: desejo do bom e da felicidade, em geral, eis no que para todos consiste o grande e astucioso Eros. Mas há muitos modos de dar satisfação ao amor e, dentre eles, o de procurar as riquezas, os esportes, a filosofia — aos quais todavia, não se aplicam corretamente os nomes de amante e amado; apenas a uma determinada espécie de amor e aos seus sequazes é que se dá o nome que de direito pertence ao gênero todo”.[12]

28. Não só o conceito de sublimação está contido nestas reflexões de Platão como também, se procurarmos examinar o mecanismo da transferência, podemos ver neste diálogo importantes contribuições. Evidentemente, não se encontrará explicitada a forma que a transferência assume na clínica, mas se observará as mesmas operações semióticas, constituídas pelos fatores: objeto, ausência e símbolo. Lacan percebeu os elos da transferência na clínica com a aparição no sujeito “dos modos permanentes segundo os quais ele constitui seus objetos.”[13] Isto é: mesmo em termos estritamente psicanalíticos, a afirmativa de Lacan nos autoriza algumas das inferências contidas neste ensaio de crítica literária.

29. Podemos afirmar que segundo Platão todo amor é amor de transferência. Eros ama, através dos homens, ou os homens amam, através de Eros, não aquilo que é tangível para os homens, mas o que ele perdeu para o seu rival Thanatos: o que é amado no objeto simbólico de amor dos homens.

30. Para explicar através de um exemplo, admitamos outra intromissão pessoal:

Não quero aquilo que quero:
o objeto é só o querer.
Não amamos quem amamos
mas o amor, modo de ser.
[14]

CASTRO ALVES:
O TRIUNFO DE EROS
 

Em “Mocidade e morte”, poema escrito em 1864, Castro Alves enfrenta o conflito entre os dois poderosos deuses das disposições anímicas: Thanatos, senhor da desagregação, do tédio e do espírito romântico, e Eros, jovem arqueiro de movimentos vitais, que disputa o domínio da natureza para que esta frutifique. É evidente a opção do poeta pelo filho ou aliado de Afrodite:

Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela na amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde
Å sombra fresca da palmeira erguida.

 

32. “Mocidade e morte” pode ser tomado como uma profecia, onde o poeta antecipa a sua condenação: sabe-se que em fins de 1868 ele feriu o pé com um tiro, resultando em grave enfermidade que culminou na sua amputação e na morte do poeta. Freqüentador da vida social e boêmia das capitais, o jovem de apenas vinte e um anos se recolhe à fazenda, em Curralinho, onde escreve várias páginas de poesia testemunhando sua luta contra Thanatos, vindo a falecer no dia 6 de julho de 1871. Este poema, escrito quatro anos antes do desencadeamento da tragédia da sua vida, ganha assim especial relevo e significado.

33. Se, por um lado, Thanatos se insinua impassivelmente, por outro, Eros é exaltado: “Oh! eu quero viver, beber perfumes”. Causou estranheza à moral vitoriana quando Freud ligou o exercício da sexualidade com o exercício mesmo da vida, explicitando, em linguagem científica, o que se sugeria em linguagem poética. Aqui, é evidente a identificação dos símbolos mais “inocentes” da vida e da natureza com a condição sexual do animal humano, começando pela sinestesia que, em Castro Alves, bem pode ser lida ainda como metonímia. Lembre-se que em 1870 ele escreveu: “O perfume é o invólucro invisível / Que encerra as formas da mulher bonita. / Bem como a salamandra em chamas vive, / Entre perfumes a sultana habita.”

34. Transformada a sinestesia — “beber perfume” — em metonímia, a carga erótica começa a se tornar mais evidente. Nos versos “Ver minha alma adejar pelo infinito / Qual branca vela na amplidão dos mares” dois momentos devem ser sublinhados. Primeiro, o significante “adejar”, que pode remeter ao significado “bater asas”, mas pode também ser interpretado por analogia ao significante “adejo”, que no nordeste brasileiro quer dizer “cavalo que vagueia sem cavaleiro”. Desnecessário demonstrar a sexualização da imagem composta por “cavalo que vagueia”, como também já sabemos que a alma, em Castro Alves, também é uma entidade sensual, animal (de “anima”) e não uma sombra transcendental. Lembre-se, a propósito, o poema “Boa noite”, onde se Lê: “Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos / Treme tua alma, como a lira ao vento, / Das teclas de teu seio que harmonias, / Que escalas de suspiros, bebo atento!” A alma animal (“anima”) experimenta a sensação lasciva do toque íntimo. Por fim, nova sinestesia que pode ser lida como metonímia, onde aparece o mesmo verbo: “beber”. Porque, mais uma vez, “beber”?

35. Voltemos aos dois versos citados acima. Se o primeiro “Ver minha alma adejar pelo infinito” — é uma figuração sensual, o segundo — “Qual branca vela na amplidão dos mares” — contém dois símbolos da maior força erótica. O mar é a mãe original, o símbolo da fecundidade por excelência. Também a água, que molha, tem o seu verbo — “molhar” — claramente incluído em contextos sexuais.

36. Já os gregos ilustravam magnificamente esta concepção da água como colo fértil: Afrodite, deusa do amor, nasceu das águas. Cronos, o tempo, pai ancestral, perdeu seu reino para Zeus, seu filho. Ele temia ter o poder usurpado pelo filho que, em vingança, lhe castra e lança os órgãos às águas do mar. Dessa semeadura, conta o mito, nasce Afrodite.

37. No poema de Castro Alves, a “amplidão dos mares” é semeada por “branca vela” metonímia de barco e, ao mesmo tempo, metáfora de sugestão idêntica a “palmeira erguida” (“No seio da mulher há tanto aroma... / Nos seus beijos de fogo há tanta vida... / — Árabe errante, vou dormir à tarde / À sombra fresca da palmeira erguida.”). O aroma, o perfume, reaparece ligado ao fogo da vida. Também ligada à palmeira erguida está ligada a figura do árabe, requintado amante e, segundo a tradição patriarcal, macho de muitas fêmeas.

38. Em outro momento do poema, as idéias contidas na estrofe analisada são reiteradas:

Morrer quando este mundo é um paraíso,
E a alma em cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas...
 

39. Se a água aparece na primeira estrofe com a fecundidade, o sal e a inquietude do mar, aqui ela reaparece com a tranqüilidade doce do “lago virgem”. Na figura anterior, a vela penetra no mar e nesta o cisne rasga o lago, boiando “à tona das espumas”. Já este último verso — “Quero boiar à tona das espumas...” — evoca o cansaço de depois: o se entregar ao repouso após o repuxo de sons e cores.

40. Outro poeta brasileiro, Vinícius de Morais, também recorreu ao resultado da água, ou do que é molhado, em movimento: “Das bocas unidas fez-se a espuma”.

41. Sob imagens estereotipadas da natureza virgem, tão a gosto da fuga e do alheamento românticos, Castro Alves estrutura um discurso sensual, onde é flagrante o desejo desesperado de fazer Eros cavalgar a vida, triunfando sobre Thanatos. No verso “Morrer... quando este mundo é um paraíso”, as veredas de Eros, que se confundem com o espaço da vida mesma, em toda sua plenitude, transformam os territórios do homem em paraíso, lugar edênico que comporta a pulsão sexual. Observe-se que a tradição romântica tende a identificar esta pulsão como uma força demoníaca, em chamas como o próprio inferno, enquanto Castro Alves situa o reino de Eros no mundo dos homens que, por isso, se transforma em espaço paradisíaco.

42. A sensualidade do ato de viver é exaltada, em confronto com o vazio, como nos versos:

Ai! morrer — é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larga errante no sepulcro fundo.

 

43. Como símbolos da vida, Castro Alves elege os astros no céu, a cama na alcova e os beijos da amante, antônimos dos círios e sepulcros. Se os poetas românticos, marcados pela regressão e pela natureza exigente e compulsiva que termina por ignorar o outro como fonte da vida, anseiam sempre pela dramaticidade suprema da morte, em Castro Alves o uso deste clichê é transformado em grito desesperado que espera tanger Thanatos para longe dos feudos da vida. Mesmo diante da presença fria do demiurgo da destruição, o poeta clama:

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
 

44. Aqui, a moral do cristianismo não teve força suficiente para instaurar o culto de Thanatos, com sua promessa de salvação mediante a aceitação de um projeto de vida masoquista, onde o prazer é atributo do Diabo e a dor, de Deus.

45. Observe-se ainda que, ao elevar o espírito numa oração vocativa, o poeta não se envergonha da sua nudez lasciva nem do gosto de maçã e vinho na boca diante do Senhor. Ele canta a vida como lugar da sede e do desejo, porque sabe que o prazer é um espaço mágico que habita o relâmpago e o céu dos sentidos, erguendo os pilares do paraíso. Aqui mesmo. Como preparação do outro.

46. Novamente a imagem da água, como força sensual, retorna vestida de novos significantes (“Quando a sede e o desejo em nós palpita”). Vale voltar às sinestesias metonímicas vistas acima, onde o verbo “beber” se enriquece de significados compostos por associações. Aqui, finalmente, aparece claro o motivo deste “beber” — quer sejam aromas ou suspiros: a “sede” — pulsão sinestésica.

47. Se Thanatos triunfa sobre o espírito romântico, em Castro Alves, o calor de Eros constrói a imortalidade — ausência e objeto — presente no símbolo mulher.

48. Concluindo, vimos que o romantismo, enquanto movimento literário e conjunto de atitudes e idéias que emprestam uma feição particular ao século XIX, é fortemente marcado pelo triunfo da morte sobre o amor, ou, tomando como símbolos destas duas forças polares os deuses da mitologia clássica, o triunfo de Thanatos sobre Eros.

49. Embora os romances e poemas sentimentais e amorosos constituam a parte mais conhecida e admirada da produção romântica, é um equívoco supor o homem romântico como um cavaleiro do amor. Ele é, na verdade, o cavaleiro da morte. O amor é apenas uma peripécia a distrair a pulsão de morte que seduz e dirige o romantismo. A moral do cristianismo, na sua versão mais perversa, que domina o século XIX, propõe um amor inatingível, incorpóreo, onde o prazer é o objeto do pecado. A contemplação, a espera e a imobilidade resignada são os valores supremos desta moral e as marcas do herói romântico.

50. Poucos escritores fugiram a este lugar-comum, onde a ânsia de amar substituía a vida amorosa. Castro Alves foi um poeta que deslocou radicalmente este modo de vida, ou este modo de morte tão em moda. Daí a atenção que é dada à sua vida aventurosa e à seqüência de episódios donjuanescos que ilustram suas peripécias pela velha cidade da Bahia ou pela noite paulista. O homem Castro Alves destoa do protótipo do poeta romântico. Os cantores suspirantes do século passado aceitavam como ideal supremo ser dobrados pelo sofrimento e padecer com orgulho e masoquismo o calvário do mal-do-século. Contrariamente, este singular poeta, deslocado da perversa tradição do seu tempo, tornou-se cantor e cultor do prazer e da vida.



[1] MANNHEIM, Karl. Essays on sociology and social psychology. 2a. ed. London, Routledge, 1959; apud BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2a. ed. São Paulo, Cultrix, 1974, p. 100.
[2] FENICHEL, Otto. Os mecanismos de defesa. In —: Teoria psicanalítica das neuroses (The psychoanalitic theory of neurosis); trad. Samuel Penna Reis, rev. técnica de Ricardo Gomes. Rio de Janeiro, Atheneu, 1981. p. 136-137.
[3] CAPINAN, José Carlos. Compreensão de santo. In —: Inquisitorial; poemas. Salvador, s. ed., 1966. s. n. p.
[4] LEITE, Dante Moreira. Lucíola: teoria romântica do amor. In —: O amor romântico e outros temas. 2ª. ed. ampliada. São Paulo, Nacional, 1979. p. 58.
[5] SALLES, David. Castro Alves e a lírica amorosa romântica. In —: Do ideal às ilusões. Alguns temas da evolução do romantismo brasileiro. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira; Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980, p. 38-51.
[6] AZEVEDO, Álvares de. Carta. Apud BANDEIRA, Manuel: Apresentação da poesia brasileira. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1967. p. 67.
[7] Idem, ibidem, p. 65.
[8] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2a. ed. São Paulo, Cultrix, 1974, p. 132-133.
[9] PLATÃO, Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 160.
[10] PLATÃO, Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 170.
[11] SEIXAS, Cid. Espelho Côncavo. In —: Fonte das pedras; poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. p. 94.
[12] PLATÃO. Banquete [Symposion]; trad. direta do grego por Jorge Paleikat. In —: Diálogos, Vol. I. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, s. d., p. 167.
[13] LACAN, Jacques. Escritos [Ecrits], trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 98.
[14] SEIXAS, Cid. Espelho Côncavo. In —: Fonte das pedras; poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 94.

 



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