Cynara Menezes
O artista quando coisa
14.11.1998
Cynara Menezes
Da Agência Folha
O poeta mato-grossense Manoel de Barros, retorna com
novo livro. Retrato do Artista Quando Coisa estará nas livrarias a
partir de amanhã. Novamente a paisagem pantaneira e Bernrado, peão
de sua fazenda há mais de meio século, aparecem como um dos
elementos de destaque da sua obra.
A poesia do mato-grossense Manoel de Barros, 81, deve
menos à exuberante paisagem pantaneira que à inveja confessa que
sente do matuto Bernardo, peão de sua fazenda há mais de meio
século. ``Bernardo é o que eu queria ser'', diz o poeta. A inveja
que Manoel de Barros nutre por Bernardo é tão grande que muito do
que há no novo livro do poeta, Retrato do Artista Quando Coisa, nas
livrarias a partir de amanhã, é, na verdade, inspirado no peão. A
"coisa" é Bernardo, não Manoel.
"Retrato do artista quando coisa: borboletas já
trocam as árvores por mim", diz o poema que abre o livro. É puro
Bernardo, encarnação viva do "bom selvagem" de Rousseau cuja
inocência Manoel de Barros persegue como um tolo busca a sabedoria.
Nos ombros de Bernardo, qual coisa que é, pousam insetos e
passarinhos. Foi contratado pela família do poeta quando tinha 18
anos para cuidar de uma tia de Manoel, louca furiosa e mantida presa
em um quarto com grades. "Quando ela viu Bernardo ficou mansa. Os
puros têm uma inocência que transmitem aos loucos, aos bichos e aos
poetas, também", diz o escritor. A nova obra de Manoel de Barros
está repleta destes "puros" de espírito tão invejados - há, além de
Bernardo, o índio guató Salustiano e os andarilhos Passo-Triste e
Pote Cru, saudados pelo poeta como pastores que o guiarão até a
inocência.
Uma busca que começou ainda nos anos 30. Nascido em
Cuiabá em dezembro de 1916, aos 20 anos - bem antes, portanto, de
beatniks e hippies aparecerem- Manoel enveredou por uma longa viagem
que começou na Bolívia e terminou em Nova York.
Entre os índios bolivianos, ``fascinado'', permaneceu
seis meses. A cultura dos museus e teatros seria o choque que viria
depois, já em território norte-americano. O encontro dos dois mundos
fortaleceu a admiração pelos clowns do cinema que persiste até hoje.
``Gosto de Chaplin, do Gordo e o Magro, dos Trapalhões, dos irmãos
Marx'', diz Manoel. ``Todos os dias acordo às 5 da manhã, tomo
guaraná - meu pai me viciou -, vou para o escritório e lá fico
descascando palavras. Quando desço ao meio-dia, tomo um uísque (bebe
álcool diariamente) e ligo a TV para ver o Chaves''.
O escritor, que, é preciso dizer, também possui um
jeito clowniano à Groucho Marx, com seu bigode e cabelos brancos em
desalinho, explica que usa o palhaço mexicano como um respiro. ``É
para me livrar um pouco da literatura, que dá muita angústia''.
Diz-se tímido, mas é simpático e bem-humorado. Conta que trabalha
com lápis e borracha para apagar as ``besteiras'' quando aparecem.
``A borracha é minha salvação'', brinca. A mulher, Stella,
companheira há 51 anos, é a primeira leitora e a maior crítica.
"Quando acho que já `pari', mostro para ela, que diz:
`Não está bom ainda, vai trabalhar'. Isso umas três vezes. Quando
ela diz que está bom, aí eu mando para a editora tranqüilo".
Conheceram-se no balcão do escritório de advocacia onde Manoel
estagiava. Ele fazia fichas. Ela deu o nome completo, endereço e
telefone. Ele ligou na mesma noite. ``Foi um impulso irresistível.
Existe amor à primeira vista. Ou melhor, intuição à primeira vista.
Eu tive a intuição de que aquela era a mulher para mim''.
Já escrevia naquela época. Seu primeiro livro, Poemas
Concebidos Sem Pecado, foi escrito aos 19. Ficou conhecido, porém,
apenas a partir de 1980, quando Millôr Fernandes, autor das
ilustrações da nova obra, recebeu um livro seu e o divulgou.
Surgiram os rótulos: ``poeta ecológico'', ``surrealista'',
``primitivo''. O último é o menos rejeitado - até gosta. Ecológico é
o pior para ele.
"Poesia para mim é linguagem, não paisagem", diz.
"Dentro de mim existe um lastro que é o brejal. Misturo dicionários
com o brejo, não faço nada mais que isso". Não só coloca o Pantanal
como elemento (e não tema central) de sua obra, como diz adorar o
Rio de Janeiro, cidade onde passou parte da infância e juventude.
Sua frase predileta a esse respeito encerra a discussão: "Vivo no
Pantanal, mas gosto mesmo é do Leblon".
Diz também não possuir inspiração, poemas que o
acordem no meio da noite, mas, às vezes, vê surgir uma idéia, uma
palavra. Se Drummond afirmava lutar com a palavra (``Lutar com
palavras/é a luta mais sã''), Manoel de Barros mais propriamente
``bolina'' os vocábulos, como um amante desavergonhado.
"As palavras se oferecem no cio para mim. Tenho uma
relação erótica com elas", diz. De tanto ``bolinar'', seu dicionário
favorito, uma cinquentenária obra editada em Portugal em cinco
volumes, está "desbeiçado", com a lombada torta das retiradas
freqüentes da estante. O tempo para a ``bolinação'' diária foi
obtido a duras penas, após anos de trabalho pesado na fazenda que
herdou do pai, construindo cercas, levantando a casa, tratando do
gado.
"Passei dez anos dependurado em bancos. Não dormia,
não fazia versos. Isso tudo só para conquistar o ócio, a
vagabundagem. Não sou Dostoievski, para escrever sob pressão.
Construí meu ócio", conta. Trauma de juventude: morou no Rio de
Janeiro na mesma pensão que Graciliano Ramos e ainda guarda a visão
do escritor apertado com família e filhos em um quarto, escrevendo
em um canto, o copo de pinga e muitas bitucas de cigarro à frente.
``Ainda não vivo de poesia, mas recebo meus chequinhos'', diz.
É cético quanto às traduções de sua obra - ``Não
conseguem passar a solidão da gente'', diz - e, tão recente, a fama
o incomoda. Entrevistas, só sem gravador. Mas quando fala dos
prêmios que têm recebido, os olhos pequenos brilham de
contentamento. Há pouco mais de uma semana, no Rio, recebeu o mais
recente deles, pelo reconhecimento da obra, concedido pelo
Ministério da Cultura. Então metamorfoseou-se de vez em Bernardo,
com sua reação simples e sem vaidade, como o peão que embolsava os
ganhos por uma cerca recém-erguida. ``Gosto de prêmios quando tem
dinheiro. Quando não tem eu nem vou receber. Esse daí é bom, ``vinte
e cincão' (R$25 mil). Descobriram que tenho uma obra''.
LIVROS DE MANOEL DE BARROS
* Poemas concebidos sem pecado - 1937
* Face Imóvel - 1942
* Poesias - 1956
* Compêndio para uso dos pássaros - 1960
* Gramática expositiva do chão - 1966
* Matéria de poesia - 1970
* Arranjos para assobio - 1980
* Livro de pré-coisas - 1985
* O guardador de águas - 1989
* Poesia quase toda - 1990
* Concerto a céu aberto para solos de ave - 1991
* O livro das ignorãças - 1993
* Livro sobre nada - 1996
Leia a obra de Manoel de Barros
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