Wilson Martins
Horas de leitura
Prosa e Verso, 18.01.2003
Podemos passá-las em companhia de poetas como, por
exemplo, Renata Pallottini, que é uma das grandes vozes líricas do
nosso tempo, algo injustiçada, até hoje, em perspectivas nacionais
(“Um calafrio diário”. São Paulo: Perspectiva, 2002). Seu território
emocional vai dos sentimentos íntimos e das memórias afetivas às
intensas vibrações políticas (no sentido nobre da palavra),
escrevendo em todas essas pautas os “versos definitivos” assinalados
por Carlos Drummond de Andrade em carta de 1956: aqueles “que a
gente não esquece mais”, aqueles em que nos integramos como se
fossem nossos.
Sonetista exímia no momento em que os pobres de
espírito se esmeravam em ridicularizar essa forma poética como
herança espúria do Parnasianismo, mestre do poema longo e da
identificação com a cidade e os dias, com a consciência orgânica das
origens familiares, integrada no contemporâneo (mesmo no que possa
ter de efêmero), a carreira iniciada com “Acalanto”, em 1952,
desdobrou-se nos poemas inspirados pela atração do mundo e sua
variedade, passando pela ideologia de “Coração americano” (1976),
para culminar, em 1995, na “Obra poética”, em que “Um calafrio
diário” agora se incorpora como renovação, não repetição, do que foi
compondo ao longo dos anos.
Renovando-se sem se repetir, ela tampouco ignora a
realidade do mundo real, fixando-o em sua vergonhosa atualidade:
“Chegavam silenciosas, noite alta,/ comboiando o estrangeiro/
faminto de alma./ Depois, no quarto ao lado, / com homens variados,
/ faziam explodir os seus gemidos / que ouvíamos sorrindo,
sussurrando belezas. / Era a sua verdade? / Era tanto o prazer? /
Gemiam por gemer / Ou por delicadeza? // De manhã tomavam banho, um
pão com leite e mais nada. / O piso úmido ficava / com vestígios / e
pegadas (...)”. (“As meninas da rua 17”).
Caberia comparar a contenção indignada desse
instantâneo com os poemas “feministas”, ingenuamente desafiadores,
referidos por Carlos Drummond de Andrade: “Moças de quinze,
dezesseis anos escrevem as maiores besteiras, sem gramática, sem
nexo. Eu acho muita graça que são todas pornográficas, a pornografia
poética feminina é uma coisa alarmante... (...) Essas pessoas não
sabem o que é verso, e isso é um mal” (Edmílson Caminha. “Drummond:
a lição do poeta”. Teresina: Corisco, 2002). Se fossem apenas as
adolescentes de quinze ou dezesseis anos... As fronteiras são,
aliás, tão imprecisas quanto movediças, pouca diferença havendo
entre a pornografia e a erótica, que é o seu eufemismo justificador,
conforme os distinguos jesuíticos do próprio Drummond: “De fato,
algumas revistas me pediram poemas eróticos e eu publiquei. (...) O
fato de esses poemas terem obtido boa receptividade de certo modo me
anima a cogitar uma possível edição da totalidade deles, que são
três dezenas (...)”.
Em outras palavras, tratando-se de poeta importante e
celebrado, os poemas pornográficos devem ser lidos como eróticos, o
contrário ocorrendo quando autores de 15, 45 ou 60 anos não têm
suficiente respeitabilidade para legitimá-los. Estamos no tempo em
que a palavra sexo tornou-se sinônima de amor e tomou-lhe o lugar (a
entrevista é de 1984), mundo inteiramente oposto ao de Joanyr de
Oliveira, outro excelente poeta de uma cidade que ainda não viu
reconhecida a sua importância cultural (“Tempo de ceifar”. Brasília:
Thesaurus, 2002).
Os poetas de Brasília são, em certa medida, uma
categoria à parte, justamente na medida em que a presença da cidade
é uma constante mental, implícita ou expressa, mesmo como pseudópode
das letras mineiras, tanto pelo lugar de nascimento de muitos poetas
locais (como o próprio Joanyr de Oliveira) quanto pelo desejo
declarado de afirmação, testemunhado pelas antologias por ele
organizadas (“Poetas de Brasília”, 1962, e “Antologia dos poetas de
Brasília”, 1971, mais “Poetas de Brasília”, 1998). Vistos da ponte,
os “poetas de Brasília” ainda se confundem como os “Poetas mineiros
em Brasília”, título da coletânea reunida por Ronaldo Cagiano
(Brasília: Varanda, 2002).
Tudo isso propõe um problema de identidade: “Mero
artífice/ submerso nas noites, / na oficina dos mitos, / na áspera
colheita / de palavras. / Apenas navegador / de fábulas e lendas.
(...) Quem sou eu? / O poeta sem nome, / sem o amor do povo / a quem
canta e ama (...)”. (“Quem sou eu?”). Nem sempre ele escreve no
idioma metafórico, que é o da poesia, resvalando para o vocabulário
referencial, que é o da prosa. Assim, por exemplo: “Nem todas se
conscientizam / de que os libertadores remanescem / e (insanos)
desafiam / o chumbo dos latifúndios (...). Nem todas bebem
perspectivas / aptas para a colheita (...)”.
Conscientizar-se para desafiar os latifúndios pode
ser atitude das campesinas (no poema desse título), mas não será a
transposição que a exprima em poesia. Os bons poemas de Joanyr de
Oliveira compensam largamente os pequenos reparos que alguns deles
possam suscitar, todos compostos no plano do empenho intelectual e
da sensibilidade nativa. Antônio Carlos Secchin, de seu lado, é
poeta de poetas, esperando ou presumindo que o leitor culto
(condição essencial) saiba identificar as alusões paródicas ou
irônicas dos poemas (“Todos os ventos”. Rio: Nova Fronteira, 2002):
“Todos os ventos e nenhum vendaval”, escreve Eduardo Portella no
prefácio, com alguma malícia, sendo certo que “Antônio Carlos
Secchin recolhe todos esses ventos, esses intermináveis caprichos
meteorológicos, e os põe superiormente a serviço da palavra e do
presságio”.
Não é difícil identificar Cruz e Sousa no poema
“Cisne”, que lhe é expressamente dedicado — mas, quem é o “velho
Homero de província” que lhe inspirou versos impiedosos, talvez
vingativos? Álvares de Azevedo é um pouco satirizado em “Noite na
taverna”, sendo pelo menos ambígua a homenagem que presta ao famoso
“Trio” parnasiano que as gerações posteriores timbraram em
exorcismar. E assim se passam as horas de leitura e suas emoções
fugazes, os textos que permanecem ou não permanecem na memória e os
que marcam momentos de sensibilidade.
« Leia os ensaios de
Wilson Martins »
|